“Faz dois anos e nada foi resolvido. Não ter resposta é o que tem deixado todo mundo muito motivado e penso que mesmo quando tiver resposta a Marielle vai estar com muita força ainda, porque é isso: tentaram nos enterrar mas não sabiam que éramos sementes ”.
A declaração é da jovem Letícia Gabriela da Cruz Silva (24) e traduz o sentimento de diversas pessoas impactadas pela luta da vereadora Marielle Franco, assassinada brutalmente há dois anos, no dia 14 de março.
Letícia nasceu e cresceu na periferia da zona leste de São Paulo, no bairro Jardim Fernandes. Apesar da distância de 422 km entre o bairro paulistano e o Complexo da Maré - onde Marielle viveu boa parte da vida - as proximidades na trajetória são muitas.
Letícia, assim como Marielle, é mulher, negra, periférica e ingressou na universidade por meio de um cursinho popular, Letícia pela Educafro, entidade do movimento negro engajada na inserção da população negra e pobre no ensino superior. Hoje, a jovem cursa o último semestre de Direito e atua como voluntária e assessora jurídica da organização que a ajudou a ingressar na universidade.
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As semelhanças, que já eram muitas, tendem a crescer ainda mais tendo como elemento motivador a indignação com a morte da Marielle. Letícia conta que a Educafro vinha articulando desde de 2017 uma rede de fomento à política e de inserção da juventude negra na atuação política.
Foi o atentado contra a vida da Marielle, no entanto, que funcionou como propulsor para despertar na instituição a urgência de formar jovens para se tornarem os próximos “Obamas e Marielles”, como diz Letícia, ao citar a frase dita por Frei Davi, fundador da instituição.
Surge em 2018, então, o Engaja Negritude , uma iniciativa suprapartidária, para apresentar à juventude o sistema político e de fomento à inserção dos negros na política. Com o tempo, o projeto passou a pensar também na importância da representação partidária e ocupação dos espaços de poder.
“A Marielle também foi o despertar de posicionamento político da Educafro. É legal dizer o quanto o legado da Marielle influenciou para além da instituição, porque eu, por exemplo, fui uma dessa pessoas fomentadas”, diz Letícia.
Após ser fomentada, Letícia passou a trilhar caminhos muito parecidos com o de Marielle, o que ela acredita ser fruto do “ impacto ” e inspiração que a vereadora teve sobre a sua vida.
A estudante de Direito é hoje filiada ao PDT-SP , partido pelo qual pretende se lançar vereadora nas eleições municipais deste ano. Também é pela sigla que assume a presidência da Ação da Mulher Trabalhista na capital, além de atuar no movimento negro e na pauta de mulheres do partido.
“ Nosso corpo sempre foi muito excludente nesse espaço e em vários outros, mas na política isso piora . Nosso corpo nunca é visto pra protagonizar, é sempre pra servir. Então, a idéia agora é ocupar os espaços e mostrar para que viemos. E, com certeza, essa referência, e a força de Marielle, foi um impulsionador para eu sair da caixinha”, afirma.
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“Quando eu fico pensando na minha caminhada política eu penso: por quê? E eu vejo que faz parte da minha missão de vida, que busca lutar contra desigualdades sociais, raciais e de gênero. Então, ter esse contato com a história da Marielle é saber que é possível, sim, a gente chegar lá. E também, quando chegarmos lá termos todo o cuidado para que não tenhamos mais Marielles, no sentido do seu assassinato”, complementa.
A potência da luta de Marielle impactou outros cantos da zona leste de São Paulo, como a paróquia Nossa Senhora do Carmo, localizada em Itaquera, onde surgiu no dia 14 de julho de 2018 o Movimento Pastoral LGBT “Marielle Franco” (MOPA).
Edilson da Silva Cruz (32) é educador e diretor escolar, também é um dos fundadores e coordenadores do MOPA. Ele conta que a iniciativa de criar o movimento surgiu a partir de outro grupo pastoral LGBT que atuava no centro da cidade.
O Padre Pedro Paulo Sérgio Bezerra e a linha da teologia da Libertação , que prega contra o conservadorismo, instiga o combate a opressão e as desigualdades, foram fatores determinantes para a criação do núcleo na igreja de Itaquera.
O MOPA surge oficialmente no dia 14 de julho de 2018, exatamente quatro meses após o assassinato da Marielle, e a tendo como símbolo do movimento.
Edilson conta que o nome da Marielle foi escolhido porque em vida ela estava alinhada com a luta pelos direitos da comunidade LGBT e seguiu uma trajetória de fé dentro da igreja católica , onde chegou a ser catequista e membro da pastoral da juventude.
“Ela representa tudo o que nosso grupo também representa: a ideia de que nós sendo cristãos não precisamos negar a sexualidade, pelo contrário, vivê-la da melhor forma, e ao mesmo tempo tendo uma postura de engajamento social por transformação”, explica Edilson, salientando que o grupo visa retomar a imagem da Marielle ligada à igreja católica.
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A missão do MOPA é ser espaço de acolhida das pessoas LGBT dentro do meio religioso, promovendo debates, reflexões sobre o evangelho e valorizando o exercício da fé alinhado à diversidade sexual.
“O que nós pregamos é o direito à cidadania religiosa que nós temos, do jeitinho que nós somos, sem precisar viver de celibato se a gente não quiser viver de celibato, sem precisar se adequar a outros padrões e que a nossa sexualidade e a diversidade sexual seja reconhecida”, diz.
O MOPA estará ao lado de dezenas de movimentos sociais e partidários que organizam o ato em prol da memória da vereadora neste sábado (14), com concentração na Praça do ciclista à partir das 17h para questionar: “Quem mandou matar Marielle”.
Além do ato, o movimento pastoral LGBT mantém Marielle presente em todas as reuniões com uma bandeira e uma foto da vereadora acompanhados de um dos últimos tuítes escritos por ela: “Quantos terão que morrer para essa guerra acabar”.
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As imagens e adereços que remetem a memória da Marielle não são os únicos elementos presentes nas reuniões do grupo, a fé na comunhão dos santos, crença da igreja católica de que os mortos estão presentes em comunhão, faz com que a política assassinada se mantenha viva entre os membros. “Temos essa presença espiritual da Marielle”, conta.
Marielle, Luiz Melodia e Estácio: a luta por meio da arte
Marielle Franco foi assassinada no cruzamento das ruas Joaquim Palhares e João Paulo I, no bairro do Estácio
, a 200 metros do apartamento onde mora João Batista Pires (52), um cientista social e cineasta da periferia de São Paulo, que passou 15 anos na França e voltou ao Brasil em 2008 para morar no Rio de Janeiro, na rua do atentado.
A notícia do assassinato brutal comoveu João, que também é engajado em movimentos sociais e na luta por direitos humanos. O acaso de passar a morar tão perto de um marco fúnebre da militância despertou no cineasta um fascínio pela história da mulher que trilhou uma história que converge com a de João: ambos negros, estudaram ciências sociais e oriundos da periferia .
O interesse pela vida e trabalho da Marielle se transformou em uma pesquisa independente com o intuito de registrar a potência de uma mulher que denunciava o genocídio da população negra e tinha coragem de enfrentar autoridades e poderes estabelecidos, como o 41º Batalhão de Polícia de Acarí.
A pesquisa passa a ter contornos mais definidos e propósito quando João, num fim de tarde em frente ao metrô do Estácio, inicia uma conversa com um colega senegalês que não conhecia a Marielle, mas conhecia a história do Estácio e de uma de suas figuras emblemáticas, Luiz Melodia .
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A conversa despretensiosa faz João concatenar fatos inerentes a história dos personagens que pouco é sabido. Luiz Melodia, assim como Marielle, foi um defensor ferrenho da luta pela negritude, ainda na década de 1970. Além da militância, João nota que as música de Melodia narram fatos que marcariam a vida de Marielle, como a emblemática Estácio, Holliday Estácio :
Se alguém quer matar-me de amor, que me mate no Estácio
Bem no compasso
Ou então a letra de Juventude Transviada
Uma mulher não deve vacilar
Hoje pode transformar
E o que diria a juventude
Um dia você vai chorar
As observações de João serão transformadas em uma crônica “Rua Marielle nº 307”, que busca abordar nuances da vida da mulher que impactou milhões de pessoas, mas que não são tão comuns ao grande público.
“ As pessoas veem de que lugar isso vem e as pessoas se reconhecem naquele corpo, na fragilidade que aquele corpo tem, na potência que aquele corpo tem . Porque aquele corpo está falando de coisas cotidianas para muitas mulheres: quem vai ficar com meu filho? que rua eu vou passar na volta do trabalho? Ela traz questões cotidianas pra todos nós. Isso fala diretamente com a mulher negra, com a pessoa que está na quebrada e por outro lado ela defende também o direito ao corpo, à vida, ao prazer e isso fala com outros setores também”, explica João sobre porque Marielle continua como um símbolo tão potente.
Indústria cultural e a “hipocrisia da branquitude”
João, assim como tanto outros movimentos e coletivos, se apropriou do símbolo e da luta da Marielle, mas o cineasta crítica a exploração midiática da indústria cultural sobre a morte da vereadora.
“Não que essa história seja só patrimônio nosso, todos podem se apropriar dessa história , mas a gente precisa ver de que local a gente está trazendo essa história”, afirma.
“A indústria cultural também, pateticamente, tenta resgatar isso e pegar essa história da Marielle pra ela”, complementa em tom crítico.
A pré-candidata a vereadora, Letícia Gabriela, é ainda mais dura no que ela chama de “hipocrisia da branquitude”
. As críticas surgem após a TV Globo anunciar a produção de uma série sobre a morte da vereadora Marielle Franco e não haver nenhum diretor negro na produção.
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“ Estão se apropriando da nossa história , querendo se apropriar mais uma vez. Só que diferente de outros tempos, hoje nós estamos nos posicionando e buscando ter direito ao que é a nossa história. Eu vejo que infelizmente esse caso da Marielle, principalmente no caso dessa série, mostra o mau-caratismo da branquitude”, argumenta.
“Isso só reforça todo o sistema de opressão que a população negra sofre desde então, só que a gente se posicionou que não vão falar de nós sem nós ”, defende.
Rozina Conceição de Jesus (54) é diretora estadual da Unegro, secretária municipal de combate ao racismo do PCdoB e pré-candidata a vereadora pelo mesmo partido. A secretária também tece críticas ao modo como grupos alheios a causa da Marielle se apropriaram da sua imagem .
“Não dá mais para o outro que não vive a nossa história, que não sabe das nossas dores, contar a história na sua versão. A nossa história e as nossas questões têm que ser faladas por nós em todos os espaços”, diz.
Rozina também está envolvida na articulação da manifestação em memória da Marielle, por meio da Unegro, e lembra como o símbolo da vereadora se tornou um elemento potente de engajamento dos jovens na militância, na disputa eleitoral e na ocupação de espaços antes relegados.
“ Foi na Marielle que nós vimos essa grande esperança de ter uma porta-voz, jovem principalmente e de dizer o seguinte: nós também podemos estar nesse lugar, ocupar esse espaço. Eu sempre digo que a Marielle é aquela semente que deu frutos ”, explica.
“Ela é o nosso símbolo, nosso exemplo de mulher com força.O assassinato de Marielle fez um levante no sentido de que vamos enfrentar isso, dentro da política, com ações de rua, com liberdade e com direitos”, conta Rozina sobre o impacto da morte na luta em defesa dos direitos humanos.