
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva( PT) avalia recorrer ao Supremo Tribunal Federal ( STF) para contestar a decisão do Congresso Nacional que anulou o decreto de aumento do Imposto sobre Operações Financeiras ( IOF).
Na noite de quarta-feira (25), os parlamentares aprovaram um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que suspende os efeitos da medida do Executivo. Diante do revés, o Planalto aposta na tese de inconstitucionalidade da iniciativa parlamentar.
Interlocutores da base do governo no Congresso, ouvidos pelo Portal iG defendem a judicialização da ação dos parlamentares como uma forma de responder à ofensiva e de evitar cortes em programas sociais como o Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida.
“O governo Lula precisa garantir no STF suas prerrogativas, atropeladas ontem pela maioria do Congresso, que, para proteger os mais ricos, querem cortes no salário dos aposentados, na saúde e na educação. A constituição é clara e está ao lado do povo”, argumentou o deputado Rogério Correia(PT), vice-líder do governo na Câmara e presidente da Comissão de Finanças e Tributação (CFT).
Após a derrota do governo na Câmara, com placar de 383 votos a favor da derrubada e 98 contrários, e, na mesma noite, no Senado, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que os juristas do Planalto apontam que a decisão de sustar o decreto do IOF é “flagrantemente inconstitucional".
"Nem nós devemos nos ofender quando um veto é derrubado e nem o Congresso pode se ofender quando uma medida é considerada pelo Executivo incoerente com o texto constitucional" , afirmou, em entrevista à Folha de S. Paulo .
Outros dois integrantes da base do governo ouvidos pelo iG defenderam a possibilidade de levar o tema à Suprema Corte. Para eles, o Congresso não cumpriu o acordo que havia sido costurado com o Executivo no início deste mês, o que surpreendeu o Planalto com a decisão de votar o PDL, ainda mais em uma semana em que o parlamento está esvaziado.
“O governo defendeu o que acredita. Havia sido feito um acordo sobre essa matéria, mas, infelizmente, romperam o acordo, unilateralmente, e votaram o PDL” , lamentou o senador Jaques Wagner(PT), líder do governo no Senado. Para ele, o decreto buscava fazer justiça tributária e não se tratava de uma questão arrecadatória.
“Havia o primeiro decreto da presidência e, por negociação com esse Congresso, o presidente retirou o primeiro decreto, editando um novo conforme combinado, muito mais suave do que o primeiro. E, na verdade, o objetivo era cercar aqueles que vivem sonegando impostos, que arrumam caminhos e trilhas para fugir da sua obrigação com o IOF. Bom, o Congresso decidiu assim [pela derrubada], o governo vai procurar outras formas de suprir a receita que estava guardando” , afirmou Wagner.
Na avaliação dos parlamentares, a movimentação representou uma impossibilidade de diálogo e, com isso, o governo tem agora três possibilidades: buscar novas fontes de receita, fazer mais cortes orçamentários ou recorrer da decisão. A alternativa de cortes não agrada o Planalto, já que isso significa reduzir verba para programas sociais defendidos pelo presidente Lula.
Resta, assim, a judicialização e o envio de uma nova proposta ao Congresso, para dividir renda. A intenção é diminuir a renúncia fiscal de tributos concedida a grandes empresários. Esse projeto, segundo os governistas, já está em estudo e será enviado nos próximos dias.
“O presidente Lula vai ter que enviar um novo projeto no mesmo sentido: dividir renda. Nós não vamos enviar projeto para prejudicar os mais pobres” , assegurou Correia.
“A gente paga o imposto e as leis são feitas em Brasília pelos lobbies dos setores empresariais que deixam de pagar imposto com alguma desculpa e, portanto, o Brasil deixa de arrecadar. Então, esse projeto o presidente Lula precisa enviar, de preferência amanhã, e nós começaremos a debater. Vamos ver se esse projeto vai ter a mesma celeridade que teve esse outro [o PDL], que é a favor dos mais ricos” , acrescentou.
O que diz a oposição
Apesar da Constituição assegurar ao Executivo a prerrogativa de ajustar as alíquotas de impostos como o IOF, a oposição ao governo Lula no Congresso não vê como inconstitucional a decisão de derrubar o decreto que aumentou o tributo.
O deputado Coronel Chrisóstomo(PL), relator do PDL que sustou o decreto do IOF, avaliou que a possibilidade de recorrer ao STF para reverter a decisão do Congresso é “pouco favorável ao governo”, já que o parlamento, segundo ele, agiu conforme prevê a Carta Magna.
“Um dos cuidados que tivemos foi construir um relatório seguindo todos os processos legais dentro da Carta Magna. Nada fora da Constituição, inclusive fiz constar dentro do relatório” , defendeu o deputado ao iG.
Na avaliação do doutor em direito constitucional e sócio do Barcelos Alarcon Advogados, Guilherme Barcelos, essa controvérsia entre o Congresso e o Executivo é uma demonstração concreta do sistema de freios e contrapesos.
“Se é verdade que o Poder Executivo pode aumentar as alíquotas de alguns impostos via decreto, dentre eles o IOF, verdade também o é que o Parlamento pode sustar os efeitos de um decreto presidencial que, eventualmente, exorbite das suas competências ou exerça essas mesmas competências de maneira desvirtuada ou abusiva” , destacou.
O especialista considera que é possível levar o debate para avaliação do STF, mas que o embate é político e não deveria sair dessa seara. “O direito de ação e o direito de petição estão aí para isso. Porém, reitero que a questão se resume a um embate entre os dois poderes representativos, fruto do nosso sistema de freios e de contrapesos. O Supremo não governa, tampouco é, ou deve ser, representativo. A matéria deveria ficar para a política” , opinou Barcelos.
Apesar da sinalização de levar o debate para o Supremo, a Advocacia-Geral da União ( AGU) informou, nesta quinta-feira (26), que o governo ainda não tomou uma decisão sobre isso.
“Não há qualquer decisão tomada nesse sentido. Todas as questões jurídicas serão abordadas tecnicamente pela AGU, após oitiva da equipe econômica. A comunicação sobre os eventuais desdobramentos jurídicos do caso será feita exclusivamente pelo próprio advogado-geral, no momento apropriado" , disse o órgão, por meio de nota à imprensa.
O senador Jaques Wagner confirmou que, apesar das declarações de lideranças do governo e do ministro Haddad, neste momento, não há uma decisão sobre o tema.
“Não tem ainda uma posição do governo. A votação acabou agora, mas eu sou daqueles que acha que é um dia após o outro. Não tem sangria desatada, nem o mundo vai desabar. Nós vamos chegar numa hora e vamos arrumar uma outra forma e poder suprir essa necessidade” , disse.
“Falei com o presidente [Lula] há pouco, pessoalmente ele, óbvio que não gostou, mas está muito tranquilo porque ele é um democrata e sabe que o jogo é esse. O mundo não acaba hoje com essa votação” , contou Wagner
O que aconteceu
O presidente da Câmara, Hugo Motta(Republicanos), anunciou no fim da noite de terça-feira (24) que colocaria em votação, já na quarta-feira (25), o PDL que suspende os efeitos do decreto presidencial que aumentou o IOF. Como prometido, a Câmara aprovou o texto.
Em uma movimentação incomum pela velocidade, o Senado recebeu a proposta na mesma noite, pautou e aprovou a matéria em Plenário. O resultado representou uma derrota histórica para o governo federal, que viu ruir um dos pilares de sua estratégia para aumentar a arrecadação e cumprir a meta fiscal.
A crise envolvendo o IOF começou em 22 de maio, quando o presidente Lula assinou um decreto que reajustou as alíquotas do imposto, com diferentes mudanças para empresas, pessoas físicas e investidores. O governo argumentou que as alterações tinham como objetivo unificar a cobrança entre operações semelhantes e combater distorções no sistema tributário.
Com o novo decreto, as compras internacionais com cartão — crédito, débito ou pré-pago — passaram a ser tributadas em 3,5%, mesmo percentual aplicado à compra de moeda estrangeira em espécie. Para a previdência privada, planos do tipo VGBL com aportes mensais acima de R$ 50 mil passaram a ser taxados em 5%, medida voltada, segundo a equipe econômica, a evitar o uso indevido desse tipo de investimento como ferramenta de elisão fiscal por contribuintes de altíssima renda.
As mudanças mais criticadas, no entanto, foram direcionadas às empresas. A alíquota na contratação de empréstimos subiu de 0,38% para 0,95%, e a cobrança diária passou de 0,0041% para 0,0082%, com teto anual de 3,95%. No caso de micro e pequenas empresas optantes pelo Simples Nacional, o teto saltou de 0,88% para 1,95% ao ano. Apesar das críticas, o governo manteve isenção para operações como financiamentos habitacionais, crédito estudantil e empréstimos ligados à exportação.
A Fazenda chegou a anunciar um aumento do IOF sobre investimentos no exterior, mas voltou atrás ainda no mesmo dia, temendo o impacto negativo no mercado e o enfraquecimento da imagem do país entre investidores internacionais.
As mudanças vieram acompanhadas de um contingenciamento de R$ 30 bilhões no orçamento. A medida serve para conter despesas diante de frustrações de receitas, como a perda de arrecadação provocada pela desoneração da folha de pagamentos, que gerou um rombo estimado em mais de R$ 20 bilhões. Segundo o Relatório Bimestral de Receitas e Despesas, a previsão de déficit primário para 2025 subiu de R$ 29,5 bilhões para R$ 97 bilhões.
A repercussão do aumento do IOF foi imediata no Congresso. Parlamentares, especialmente da oposição e representantes do setor produtivo, passaram a criticar duramente o decreto. A pressão se intensificou e, no mesmo mês, o deputado Zucco (PL) protocolou o PDL 214/2025, pedindo a sustação dos efeitos do decreto. O texto ganhou urgência e chegou a ser pautado, mas Motta decidiu adiar a votação para que o governo apresentasse alternativas.
Ao longo de semanas, reuniões foram realizadas entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e lideranças da Câmara e do Senado. Como resultado, no dia 11 de junho o governo publicou um novo pacote de medidas, incluindo a Medida Provisória 1.303/2025 e um novo decreto do IOF com alíquotas reduzidas.
A MP promoveu mudanças na tributação de investimentos e na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), elevou a carga sobre apostas esportivas e trouxe dispositivos para combater fraudes fiscais. No novo decreto, o governo recuou no aumento do IOF para empresas: a alíquota fixa caiu de 0,95% para 0,38% no crédito a pessoas jurídicas, e o "risco sacado" deixou de ter alíquota fixa, mantendo apenas a diária. A expectativa do Planalto era de que o pacote fosse suficiente para encerrar a crise.
Não foi o que aconteceu. No mesmo dia da publicação do novo decreto, Zucco apresentou o PDL 314/2025, agora contra a versão revisada do aumento do IOF. Mesmo com o acordo construído com o governo, Motta decidiu pautar o novo PDL, que teve a urgência aprovada em 16 de junho. O gesto foi visto por aliados do Planalto como uma quebra de compromisso.
Nos bastidores, líderes da base criticaram a decisão de Hugo Motta de levar o texto a voto, alegando que ele cedeu à pressão da oposição e enfraqueceu o esforço conjunto que vinha sendo feito com o Executivo. “Como deputado e líder do PT, fui surpreendido com a divulgação da pauta de votações de amanhã. Entre os temas a serem apreciados, está o PDL que anula o Decreto do IOF. Em sessão virtual? Esse é um assunto sério demais para o país”, protestou o deputado Lindbergh Farias (PT).
A movimentação da Câmara e Senado em derrubar os dois decretos — o original e o revisado — expôs o grau de insatisfação do Congresso com a condução da política fiscal do governo e consolidou uma derrota simbólica e política para o Palácio do Planalto. Mesmo após tentativas de recuo e diálogo, o desgaste ficou evidente e reabriu o debate sobre os limites do Executivo em editar decretos com impactos tributários, sobretudo sem respaldo do Parlamento.
Primeiro decreto derrubado em 33 anos
A decisão do Congresso de anular o decreto presidencial que aumentava o IOF marcou uma derrota expressiva para o governo Lula. A última vez que o Legislativo derrubou um decreto assinado por um presidente da República foi em 1992, durante o conturbado governo Fernando Collor de Mello, poucos meses antes da abertura do processo de impeachment. Na ocasião, o alvo foi uma medida que alterava as regras de pagamento de precatórios.
Três décadas depois, a história se repetiu. O gesto do Congresso carrega peso institucional. Em mais de 30 anos, nenhum outro decreto presidencial havia sido formalmente derrubado pelo Parlamento. A medida, que inicialmente pretendia ampliar a arrecadação para garantir o equilíbrio fiscal, acabou minada pela pressão política, pelo descontentamento do setor produtivo e pela resistência dentro do próprio Legislativo.
“Estou muito feliz com esse feito. Algo que não acontecia há 33 anos, o meu relatório fez” , comemorou o deputado Chrisóstomo, que elaborou o parecer aprovado na noite de quarta-feira pelo Congresso.