Em andamento há cerca de dois meses, a CPI da Covid terminou, pela primeira vez, com a prisão de um depoente.
Trata-se de Roberto Dias, ex-diretor de logística do Ministério da Saúde acusado de ter participado de um suposto esquema de propina na compra de vacinas — algo que ele negou com veemência durante seu depoimento, alegando estar sendo "acusado sem provas".
"Ele (Dias) está mentindo desde de manhã, dei chances o tempo todo", afirmou o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), ao determinar que Dias fosse preso pela Polícia Legislativa, no final da tarde desta quarta-feira (7/7).
Segundo a assessoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da comissão, na delegacia da Polícia Legislativa é feito um mandado de prisão, depois entregue à Polícia Federal.
A partir de agora, disse Rodrigues em entrevista coletiva após a sessão, o destino de Dias "não cabe mais à CPI". "Sua defesa pode entrar com habeas corpus , creio que isso (prisão) nem vai chegar à audiência de custódia".
Segundo Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em Administração Pública pela FGV-SP, Dias será provavelmente levado pela Polícia Legislativa à uma delegacia mais próxima, onde será ouvido.
Depois, ele passará por uma audiência de custódia no prazo máximo de 24 horas, quando falará diante de um juiz.
Para ela, a detenção do ex-servidor deve ser tratada como uma prisão em flagrante comum, nesse caso por crime de falso testemunho.
O Código Penal prevê pena de dois a quatro anos de reclusão caso haja condenação, embora seja raro que pessoas permaneçam presas sob acusação de cometer esse crime, segundo Chemim.
A advogada aponta que, na audiência de custódia, há três opções possíveis:
1 - O juiz pode converter a prisão em flagrante em preventiva. "Isso normalmente acontece quando o preso tem histórico criminal, ameaça a ordem pública, pode atrapalhar as investigações e se houver uma prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria", diz Chemim.
Para Gustavo Bardaró, professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no entanto, neste caso específico, a prisão não poderá ser convertida em preventiva, porque a pena para crimes de falso testemunho (acusação que recairia sobre Dias) é de dois a quatro anos de prisão — e a prisão preventiva só é prevista para crimes de pena superior a quatro anos.
2 - O magistrado pode conceder liberdade provisória, estipulando (ou não) uma fiança;
3 - O juiz também pode conceder liberdade, com a condição de que Dias assine um termo de comparecimento a todo e qualquer ato processual ao qual ele terá que responder.
"Acredito que, nesse caso, o juiz vai optar pela terceira alternativa, exigindo que ele compareça sempre que for convocado", diz Chemim.
Badaró faz uma ressalva: considerando-se que Roberto Dias pode ser, em tese, implicado no suposto esquema de corrupção de vacinas, ele tem o direito de não produzir provas contra si mesmo, independentemente da condição formal sob a qual depôs ou de prestar juramento à CPI.
Nesse caso, "não se aplicaria a ele o crime de falso testemunho", explica Badaró. Isso provavelmente será determinante para o juiz da audiência de custódia de Dias, caso ela de fato ocorra.
A senadora Simone Tebet (MDB-MS), que se posicionou contra a prisão em flagrante, também afirmou acreditar que os desdobramentos da detenção vão se limitar a "ir para a delegacia, pagar fiança e ir embora".
'Historinha, versãozinha'
A determinação de Aziz de prender Dias pegou de surpresa até os senadores de oposição e levou a uma discussão quanto à validade da decisão.
Aziz respondeu: "Tenho tido respeito por todos os colegas senadores e tenho sido desrespeitado ouvindo historinha, versãozinha (de depoentes). Não aceito que a CPI vire chacota. Temos 527 mil mortos (por covid-19 no Brasil) e os caras brincando de negociar vacina. Por que (Dias) não teve esse empenho para comprar a (vacina) da Pfzer, que era de responsabilidade dele naquela época? Está preso por mentir, por perjúrio, e se for abuso de autoridade que a advogada dele ou qualquer outro senador me processe. (...) Todo depoente que estiver aqui e achar que pode brincar terá o mesmo destino dele. Ele recorra na Justiça. Está preso e a sessão está encerrada".
Dias, por sua vez, afirmou à CPI que nunca pediu "nenhum tipo de vantagem ao senhor Dominghetti", em referência ao depoimento de Luiz Paulo Dominghetti, que afirmou ter tentado vender vacina ao Ministério da Saúde e recebido pedido de propina como resposta, acusando Dias nominalmente.
O senador Fabiano Contarato (Rede-ES) afirmou que a prisão, no caso de depoentes que digam mentiras à CPI, "é uma obrigatoriedade". "Se faltou com a verdade, impõe-se a prisão em flagrante", declarou.
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Já governistas viram abusos na decisão de Aziz. "Foi uma prisão arbitrária e ilegal", disse o senador Ciro Nogueira (PP-PI).
O senador Marcos Rogério (DEM-RO) questionou o presidente sobre a falta de um fato concreto para prender Dias e disse que outros depoentes cometeram antes falso testemunho à comissão sem terem sido presos.
Rogério afirmou que Aziz cometeu abuso de autoridade ao pedir a prisão de Dias.
"Isso é uma ilegalidade sem tamanho, um absurdo", protestou também a advogada do depoente, Maria Jamile José.
Exaltado, Aziz respondeu às críticas. "Ele está preso por mentir, por perjúrio. E, se eu estiver tendo abuso de autoridade, que a advogada dele ou qualquer outro senador me processe, mas ele vai estar detido agora pelo Brasil, porque nós estamos aqui pelo Brasil, pelos que morreram, pelas vítimas hoje sequeladas. Nós não estamos aqui para brincar de ouvir historinha de servidor que pediu propina".
Prisão em flagrante
O auto de prisão assinado por Aziz alega que "foram verificadas diversas contradições" no depoimento de Dias, desde sua permanência no cargo no Ministério da Saúde até seu relacionamento com Dominghetti e outros acusados de participar do suposto esquema de propina.
Nos depoimentos prestados até agora, houve diversos pedidos de senadores para que depoentes fossem presos, acusando-os de terem mentido perante a comissão. Nenhum, no entanto, foi aceito por Omar Aziz.
Tanto o Código Penal quanto a legislação que regula as CPIs estabelecem que é crime "fazer afirmação falsa" como testemunha.
Portanto, caso algum depoente faça uma afirmação falsa em uma CPI, isso pode configurar crime.
A Constituição Federal e o Código de Processo Penal preveem a possibilidade de prisão em flagrante. "É a prisão por qualquer cidadão. Qualquer pessoa pode dar voz de prisão em flagrante a alguém que esteja praticando um crime", explicou, em entrevista concedida em maio à BBC News Brasil, o professor da FGV Direito Rio Wallace Corbo — antes, portanto, da prisão de Roberto Dias.
"Em tese qualquer pessoa na CPI, qualquer senador, até um membro da imprensa, poderia dar voz de prisão em flagrante se verificasse uma afirmação falsa, mas isso não tende a acontecer", disse ele.
"Por uma lógica de uma organização, parece se consolidar uma interpretação de que, nesta CPI, quem tem autoridade para dar voz de prisão em flagrante seria o presidente da CPI", observou Corbo.
Isso foi confirmado nesta quarta-feira pelo senador Randolfe Rodrigues e Humberto Costa (PT-PE) durante a entrevista coletiva após a sessão.
"Respeitamos a atribuição do presidente (Aziz)", afirmou Randolfe.
"Somos solidários à decisão dele. Ele já vinha dizendo que sua paciência estava se esgotando porque o número de pessoas que faltaram com a verdade foi muito grande", agregou Costa.
'Motivação processual'
A professora de Direito Constitucional da UFRJ Carolina Cyrillo discorda da prisão em flagrante por falsa afirmação na CPI. Para ela, o correto é que o Ministério Público seja oficiado para implementar um inquérito e apurar se aquela pessoa fez uma afirmação falsa.
"É um tipo de crime que não tem sentido prisão em flagrante. Não é simplesmente porque o senador acha que o depoente mentiu que ele efetivamente mentiu. Para enquadrar como falso testemunho, precisa de apuração", afirmou, também em maio, à BBC News Brasil.
Foi isso que Aziz mandou fazer no caso do depoimento de Fabio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação do governo Bolsonaro, que também depôs à CPI e foi alvo de pedidos de prisão - que foram negados pelo presidente da comissão.
Na interpretação dela, a prisão em flagrante é uma prisão processual, ou seja, que visa a garantir que um processo tenha sua continuidade.
Em outras palavras, para que uma prisão em flagrante ocorresse, na opinião de Cyrillo, deveria haver uma motivação processual por trás — se a pessoa ficasse solta, por exemplo, ela poderia atrapalhar a investigação do processo.
*Com reportagem de Leandro Machado e Paula Adamo Idoeta, da BBC News Brasil em São Paulo, e Juliana Gragnani, da BBC News Brasil em Londres.
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