A pandemia da Covid-19 ameaça colapsar a saúde pública no Brasil, em muitas das principais cidades mais de 80% dos leitos de UTI do SUS já estão ocupados, majoritariamente por pacientes positivados para o coronavírus. Os impactos econômicos também serão grandes. O Banco Mundial prevê queda de 5% do PIB brasileiro este ano. Saúde e economia dominam o noticiário, mas um outro aspecto da crise tem sido pouco lembrado: poderá a pandemia comprometer o sistema político-eleitoral do país?
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Já existem movimentações no meio político para encaminhar propostas ao Congresso Nacional pelo adiamento das eleições municipais de outubro para o final do ano. É o que propõe, por exemplo, o deputado federal Paulo Guedes (PT-MG). O pleito se realizaria em dezembro em um único turno, mesmo nas cidades com mais de 200 mil eleitores em que a Constituição atualmente prevê dois turnos de votação caso nenhum dos candidatos ao Executivo obtenha 50% mais um dos votos válidos.
Numa outra frente, movem-se figuras como o senador Major Olímpio (PSL-SP) e o deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG). Eles defendem a prorrogação por dois anos dos mandatos dos atuais prefeitos e vereadores, unificando as eleições municipais com as estaduais e presidenciais a partir de 2022. Tanto Olímpio quanto Aécio deram declarações recentes de que vão apresentar nos próximos dias Proposta de Emenda Constitucional sobre o tema. Para entrar em vigor, a PEC precisa ser aprovada em duas votações na Câmara e duas no Senado por 3/5 dos parlamentares em cada Casa.
A presidenta do Tribunal Superior Eleitoral , ministra Rosa Weber, diz que é cedo para falar em adiamento. Na quarta-feira (15), ela negou pedido encaminhado ao TSE pelo Major Olímpio. O futuro presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, que assume o posto em maio e presidirá o processo eleitoral deste ano, já se posicionou contrário à mudança radical de prorrogação dos mandatos. Pondera, a princípio, a possibilidade de adiamento do pleito para dezembro. Mas diz que não há pressa e a decisão pode ser tomada até o final de junho. A verdade é que a pressão sobre o processo eleitoral está crescendo e não só no Congresso.
Na semana passada, o juiz Itagiba Catta Preta Neto, da 4a Vara Federal do Distrito Federal, determinou por meio de liminar que a União bloqueasse os repasses para o Fundo Eleitoral e o Fundo Partidário e os recursos fossem transferidos para o combate ao coronavírus. Uma medida, para dizer o mínimo, bastante controversa. Detalhe: o juiz é o mesmo que em 2016 impediu a posse do ex-presidente Lula no cargo de ministro da Casa Civil da então presidenta Dilma Rousseff (PT).
O presidente do TRF da 1a Região, Carlos Moreira Alves, derrubou em 24 horas a liminar atendendo a recursos impetrados pela Advocacia Geral da União (AGU) e pelo Senado Federal. Para o Executivo e o Legislativo, a liminar interferia diretamente em matéria orçamentária, ferindo a independência entre os poderes. No documento, a assessoria do Senado informa que a destinação do Fundo Eleitoral “está sendo discutida no Congresso Nacional pelos representantes eleitos pelo povo” e que sua destinação imediata para outro fim, sem prévia autorização legislativa, se configura ameaça à segurança jurídica .
O Fundo Eleitoral de 2020 está orçado em R$ 2,034 bilhões e é destinado a financiar as eleições municipais; e o Fundo Partidário, de R$ 959 milhões, é repassado mensalmente para manter as atividades cotidianas das legendas. Os valores foram definidos pelo Congresso Nacional e sancionados pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Na prática, transferir recursos dos fundos enfraqueceria os partidos e poderia inviabilizar a realização das eleições.
Primeira janela de protesto
O maior beneficiado da prorrogação dos mandatos municipais por dois anos pode ser o próprio presidente Jair Bolsonaro na avaliação do economista e cientista político Sérgio Ferraz. Com a queda nos índices de aprovação e enfraquecido politicamente por sua postura em relação à pandemia do coronavírus, Bolsonaro ganharia tempo e evitaria que o descontentamento contra o governo se revertesse em protesto eleitoral.
“É evidente que para ele as eleições municipais passaram a representar um risco. É a primeira janela de oportunidade que se abre para que o eleitorado proteste, para que o eleitorado mostre claramente seu repúdio quanto à posição do presidente da República”, explica Sérgio. Outro fato que demonstraria a vulnerabilidade de Bolsonaro nas eleições municipais, na visão do cientista político, é o fato de ele não ter conseguido criar o seu próprio partido, o Aliança pelo Brasil.
Sérgio Ferraz considera sensata a proposta de adiar por dois ou três meses o pleito. “Pode ser algo a ser avaliado em junho ou julho. Jogaria as convenções partidárias 40 ou 50 dias pra frente e as eleições um pouco mais, para dezembro, janeiro ou fevereiro. Seria um ajuste em função de uma realidade completamente nova do ponto de vista da saúde. Daí a se propor prorrogação de dois anos dos mandatos de prefeitos e vereadores é algo estapafúrdio”, critica.
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Datas principais do calendário eleitoral
20.jul a 5.ago – período de realização das convenções partidárias para a escolha dos candidatos.
14. e 15.ago – prazo final do registro de candidaturas por meios digitais (14) ou presencial (15)
16.ago – passa a ser permitida a propaganda eleitoral, inclusive na internet, e atividades de campanha.
14.set – prazo final de análise e aprovação das candidaturas pela Justiça Eleitoral.
4. out – 1º turno da eleição
25.out. – 2º turno da eleição.
Debate local interditado
A pesquisadora na área de geografia econômica Ana Cristina Fernandes concorda que é preciso monitorar a situação do ponto de vista da saúde pública para eventualmente adiar por algum período curto as eleições de outubro. “Precisaríamos monitorar muito bem a evolução da doença no Brasil porque existe a possibilidade de segundas ou terceiras ondas de contaminação. Temos visto isso em outros países. O processo de contaminação pode ser mais longo do que a gente imaginava”. Ela mesma alerta, no entanto, que a subnotificação, com a escassez de testes, tem comprometido esse monitoramento no Brasil.
Ana Cristina é terminantemente contra a proposta de prorrogar os mandatos de prefeitos e vereadores e juntar a eleição municipal com a estadual e a presidencial em 2022. Para ela, o debate eleitoral seria totalmente ocupado pela agenda política da campanha presidencial enfraquecendo as questões municipais. “O debate sobre a agenda local é fundamental. Ainda mais agora que estamos vendo a necessidade de uma infraestrutura urbana melhor distribuída nas cidades, entre as populações. Está claro que o coronavírus afeta a vida das pessoas de forma diferente. É um engodo dizer que não tem diferença entre rico e pobre”, acentua.
“Tanto tem no acesso à infraestrutura de abastecimento de água, quanto tem na coleta de lixo, no esgoto a céu aberto, nas áreas livres, tamanho das habitações, das moradias, renda das pessoas, vulnerabilidade de terem que trabalhar sem a menor condição e informação… A agenda local está se impondo ainda mais agora quando a pandemia realça as diferenças. Daí a importância da eleição municipal nesse contexto”, defende Ana Cristina.
A tese da diluição do debate em caso de junção das eleições municipais com as estaduais e presidenciais é também a opinião de Sérgio Ferraz. “Haveria uma evidente perda de qualidade do debate público quando você vai eleger uma quantidade enorme de cargos de uma vez só. Você termina não discutindo absolutamente nada”.
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Instabilidade política é agravante
Vivêssemos num cenário de estabilidade política e segurança jurídica, a discussão sobre o adiamento ou a prorrogação dos mandatos poderia se dar numa outra perspectiva, de uma reforma política para aperfeiçoar o regime democrático do país, argumenta o cientista político da Fundaj Túlio Velho Barreto, para em seguida alertar que não é o caso.
“A situação é de tal forma precária, instável na política, que aí vão surgindo as posições mais oportunistas possíveis. De manter uma certa estabilidade relativamente em relação ao governo federal porque as eleições desse ano podem varrer do mapa esse segmento que hoje dá sustentação ao governo Bolsonaro”, avalia. Túlio compara o cenário com o que aconteceu na votação da PEC da reeleição no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, “pautada de forma oportunista em função do sucesso do Plano Real e da possibilidade da recondução de FHC”.
Mesmo considerando que o cenário pode mudar de uma hora pra outra, Túlio Velho Barreto ainda acredita no contrapeso entre os poderes e na atuação do Legislativo e do Judiciário para barrar propostas como a da prorrogação dos mandatos e unificação das eleições. “Estou falando das lideranças. Acho sim que esses dois poderes podem ser o contraponto a essas propostas e ao Executivo, especialmente diante do comportamento inconsequente e irresponsável do presidente da República, tanto no caso da pandemia quanto da condução política geral”.
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (PFL-Rio), tem sido o maior símbolo desse contraponto institucional a Bolsonaro. Assim como Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, ministros do STF e TSE , Maia tem dado declarações contrárias à prorrogação dos mandatos de prefeitos e vereadores e ponderado com cautela a possibilidade de um curto adiamento das eleições. De toda forma, acha que a decisão não precisa ser tomada agora, só em junho.
Túlio Velho Barreto lembra que nas eleições municipais de 1985, a primeira depois da ditadura em que a população pôde votar para prefeito das capitais, houve pressão de alguns grupos políticos conservadores para que os mandatos por nomeação de 1982 fossem prorrogados até 1988. A proposta não vingou. Optou-se por se fazer uma eleição para mandatos mais curtos, de três anos, justamente para intercalar as eleições municipais das estaduais e presidenciais.
“Não se pode mudar as regras do jogo quando o jogo está sendo jogado. Os prefeitos e vereadores que estão aí foram eleitos para quatro anos de mandato. Essa possibilidade é inconcebível, quanto mais quando o que está em jogo é a democracia”, alerta Túlio.
A incógnita militar
Com o novo protagonismo político das Forças Armadas, num crescente desde o impeachment de Dilma Rousseff e no ápice agora com o governo Bolsonaro, uma questão fica no ar: e os militares? Vale lembrar que foi sob o governo do general João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar, que houve o último caso de adiamento de eleições no Brasil . Exatamente das eleições municipais de 1980. Mais de 4 mil prefeitos tiveram os mandatos prorrogados. A medida foi interpretada na época como uma manobra dos militares para evitar uma derrota que se previa acachapante nas urnas.
A “desculpa” oficial do governo Figueiredo era a de que não havia existido tempo suficiente para que os novos partidos criados a partir da reforma política de 1979, pautada na distensão política e na anistia, se organizassem formalmente para o pleito. Até a reforma, o sistema era bipartidário com a Arena (pró-governo) e o MDB (oposição). Com a mudança, foram criadas legendas como PT, PDT e PP e o renascido PTB. A prorrogação foi aprovada em sessão de pancadaria no Congresso Nacional e o boicote da oposição.
Questionado sobre a postura dos militares em 2020 em relação ao governo Bolsonaro, o cientista político Sérgio Ferraz começa sua argumentação com uma ressalva. “Temos que reconhecer que essas coisas são opacas, a gente não tem acesso a uma informação clara. Existem informações ambíguas, inclusive na imprensa, são poucos os jornalistas que a gente sente que têm um acesso privilegiado à movimentação dos militares”.
Feita a ressalva, Sérgio não acredita num atrelamento automático entre Exército e Bolsonaro. “É uma linha tênue, de equilíbrio nessa análise, mas falando de uma maneira geral eu não acho que Bolsonaro conte hoje com condições de atrelar o Exército aos seus interesses. E Bolsonaro, evidentemente, tem interesse em evitar as eleições , adiar ou fechar essa janela. O que também não quer dizer que possamos contar com esses militares para avançar a agenda da sociedade civil e da racionalidade dentro do governo”, pondera.
Apesar dos pesares, Sérgio acredita que o Alto Comando do Exército – mesmo ainda cultivando os fantasmas do anticomunismo – tende a manter uma postura profissional nas suas ações e ser mais cauteloso, embora reconheça que os estratos hierárquicos mais baixos têm uma identificação muito grande com o bolsonarismo . Mas a hierarquia pesa muito nas Forças Armadas e não há indícios de que a cúpula não mantenha o controle das tropas, alega.
“Eu tenho a impressão de que os militares ficam no meio do caminho. Eles contêm até um certo ponto Bolsonaro, tentam conter, o que é interessante no atual momento, mas a gente também não pode esperar demais deles. Por outro lado, eu não vejo como Bolsonaro fragilizado como está, isolado como está, possa carregar o Exército para alguma aventura. Não vejo sinais disso”.
Resposta da sociedade civil
Se a extrema direita encampar a proposta de um longo adiamento das eleições ou sua unificação em 2022, os movimentos sociais organizados não vão se calar e vão fazer pressão contra. “De fato essa proposta já está no Congresso e já tem discussão sobre isso. Se ela for colocada em votação eu acho que não vai ficar incólume, acho que vai ter uma forte movimentação da sociedade. Eu não tenho segurança em relação aos partidos políticos, mesmo no campo da esquerda, mas a sociedade civil vai se mexer”, avaliar Carmen Silva, socióloga e pesquisadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia. Também integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
Carmen cita o exemplo da própria pandemia para fortalecer a tese de que haverá contestação. “Apesar do isolamento social, os movimentos sociais e as organizações que atuam politicamente estão conseguindo fazer mobilizações de pressão muito fortes. A renda básica de emergência mesmo só passou por uma forte pressão da sociedade, inclusive com inúmeras mensagens, articulações políticas, reuniões com lideranças políticas no Congresso”, conta.
Assim como os demais analistas ouvidos pela Marco Zero , Carmen vê oportunismo em trazer o tema da unificação das eleições em meio à crise da pandemia do coronavírus. Para ela, o mais sensato é manter os prazos vigentes – como foram mantidos os prazos de mudança de partido e filiação para quem pretende concorrer – e mais na frente analisar a necessidade ou não de adiar o pleito por dois ou três meses.
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Carmen também chama atenção para o fato de que o adiamento por muito tempo das eleições criaria um vazio da experiência do debate eleitoral. “Embora com suas limitações, as eleições sempre geram um debate político, então não ter eleição coloca água no moinho de uma saída autoritária, mais do que já está sendo o governo Bolsonaro”, analisa.