Hoje proibidas pela Constituição Federal , as candidaturas sem filiação partidária, conhecidas como candidaturas avulsas , podem virar realidade este ano e mudar a dinâmica do jogo político no País. Embora a mudança possa acontecer ainda no primeiro semestre, não é certo que a nova regra valha para as eleições municipais de 2020 e, segundo especialistas ouvidos pelo iG , a alteração precisa ser pensada com cuidado e exige adaptações na dinâmica das disputas eleitorais.
De acordo com o artigo 14 da Constituição de 1988, a filiação partidária é uma das condições para a elegibilidade no Brasil. A lei 9.096/1995, que regulamenta o artigo, justifica que as legendas são para "assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal".
Para o professor Diogo Rais, especialista em direito eleitoral da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o problema de ficar por conta do Supremo Tribunal Federal (STF) fazer uma mudança desse tipo é que ele não tem representatividade e não foi eleito diretamente pela população. "Eu até sou a favor dos candidatos avulsos, mas não da forma que está sendo feita. Como é uma mudança muito grande e é necessária a criação de normas que regulamentem essas candidaturas, era melhor que fosse algo que partisse do Congresso Nacional", diz Rais.
O assunto chegou à Corte por meio de uma ação movida pelo advogado Rodrigo Mezzomo, que tentou disputar a prefeitura do Rio de Janeiro em 2016 sem estar filiado a nenhum partido. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no entanto, barrou a candidatura.
Outro problema para a viabilidade de candidatos independentes na avaliação do advogado de direito eleitoral, Francisco Almeida Prado Filho, é que seria necessária uma mudança em todo o funcionamento eleitoral brasileiro. No modelo atual, os partidos têm acesso ao dinheiro do fundo eleitoral e ao tempo de propaganda de rádio e TV e a dúvida que se tem é sobre como eles teriam acesso a esses direitos.
Leia também: UDN: partido extinto há 54 anos pode voltar em dose dupla
Constituição é soberana
Prado Filho também diz existe um "imbróglio jurídico", já que além de a obrigatoriedade da filiação estar prevista na Constituição, o Brasil é signatário do Pacto de San José da Costa Rica . Segundo o artigo 23 do pacto, todo cidadão deve ter direito de “votar e ser eleito em eleições periódicas autênticas” e no documento não há menção nenhuma à obrigatoriedade de filiação. "É daí que vem a argumentação de quem defende as candidaturas independentes. O que eles dizem é que a Constituição brasileira é incompatível com essa convenção", afirma o advogado.
Sobre essa polêmica, a professora do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Democracia do Centro Universitário Autônomo do Brasil (Unibrasil), Ana Cláudia Santano, diz que o tratado não é superior à Constituição e que a Corte Interamericana dos Direitos Humanos deixa livre para que cada Estado escolha como desejar a forma de representação de seus candidatos. "Pelo que está acontecendo, a impressão que dá é que o Supremo Tribunal Federal está cedendo a um discurso perigoso e casuístico. Acho que a Corte está extrapolando em seu papel", diz.
O caso está na mão do ministro Luís Roberto Barroso, que ouviu em audiência pública em dezembro passado representantes de instituições oficiais, partidos políticos, sociedade civil e academia. Uma das ouvidas foi a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL), eleita por São Paulo como a candidata mais votada em 2018 e uma das autoras do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff .
"Eu sempre defendi as candidaturas avulsas não apenas por questões políticas, mas por questões jurídicas. Eu entendo que é uma garantia individual o indivíduo se voluntariar a ocupar um cargo eletivo", afirma Janaina.
Para a deputada, a temática não pode ser exclusiva do Congresso Nacional e o tempo de propaganda de TV e o acesso ao fundo eleitoral, pautas defendidas por quem é contra as candidaturas independentes, precisam ser discutidas pela sociedade. "Os candidatos poderem expor as suas ideias na TV eu entendo que é algo que beneficia a população como um todo. Não vejo nem sentido em ter que ser pago. Então a divisão de tempo pode ser debatida. Tempos iguais para os candidatos aos cargos majoritários, por exemplo, independentemente de qualquer coisa", diz.
"Agora fundo eleitoral eu defendo que tem que acabar. Eu fiz a minha campanha com recursos próprios e entendo que é possível fazer campanhas com muito menos do que normalmente se utiliza. Acho que as campanhas são muito caras porque se acostumou a ter muito dinheiro", completa a deputada.
Você viu?
Parlamentares divididos sobre o assunto
Ameaçado de ser expulso do PSB por contrariar a posição da sigla na votação da Reforma da Previdência, o deputado federal Luiz Flávio Gomes é outro defensor de candidatos sem filiação partidária. "O problema do sistema partidário brasileiro é que ele concentra muita renda e há falta de democracia nos partidos. A sociedade está muito complexa e as siglas perderam o poder de canalização e representação das pessoas."
Leia também: Lula teme brigas internas no PT por prefeitura de São Paulo, diz jornal
Por conta disso, Gomes afirma que as candidaturas avulsas podem partir tanto do Supremo quanto do Congresso. "A gente não tem que ficar nessa discussão boba. O que importa é o mérito, e nós temos que ter foco no resultado", afirma.
Na audiência de dezembro, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) discursou contra a medida, dizendo que a política brasileira acentua aspectos personalistas e desvaloriza os programas dos partidos e as pessoas. "A admissão da candidatura avulsa, na minha opinião, vai acentuar esse [personalismo] que é um dos vícios do sistema político", disse.
Ele também argumentou que, caso a legislação mude, não seria possível ter controle sobre a garantia de candidaturas de mulheres. A regra vigente hoje é que 30% das candidaturas devem ser femininas e, para o parlamentar, isso abriria uma brecha para mais desigualdade de gênero.
"Como nós faremos se nós admitirmos as candidaturas avulsas e todas forem masculinas? Nós estaríamos indo em direção oposta àquela que nós desejamos de igualdade na posição dentro dos parlamentos entre homens e mulheres", afirmou.
Candidaturas independentes no mundo
Um levantamento da Rede de Conhecimento Eleitoral Ace, criada pelo Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), mostra que 22 países no mundo não permitem candidaturas independentes em condição nenhuma. A quantidade corresponde a 9% do total de 245 países que a entidade monitora. Além do Brasil, há neste grupo países como Argentina, Bolívia, Uruguai, Costa Rica, Suécia, África do Sul e Israel.
Do outro lado da moeda estão 97 países que permitem candidaturas independentes tanto para eleições presidenciais, quanto para eleições legislativas. Nesse grupo estão Estados Unidos, México, Colômbia, Portugal e França. Há ainda 86 países que permitem candidaturas avulsas apenas para cargos legislativos. Outras 25 nações autorizam só para eleições presidenciais.
Leia também: Partidos políticos não têm planos para candidaturas femininas
O caso mais recente de um presidente que foi eleito em uma candidatura avulsa foi o de Sebastian Piñera no Chile, em dezembro de 2017. Apoiado por partidos de centro-direita e já tendo ocupado a presidência do país entre 2010 e 2014, ele se desfiliou da legenda Renovação Nacional. Ele disputou o segundo turno com outro candidato independente, o senador Alejandro Guillier, que nunca foi filiado a partidos políticos e tinha o apoio da centro-esquerda.
Antes de Piñera, o presidente francês Emmanuel Macron foi outro que venceu eleições presidenciais sem filiação partidária, em maio de 2017. Ele é um dos fundadores do movimento cívico francês En Marche! (Em Marcha!, em português) e venceu Marine Len Pen , da Frente Nacional, com 66% dos votos.