Depoimentos de policiais sobre mortes no Jacarezinho durante a operação mais letal da história do Rio não batem com os laudos de necropsia das vítimas. Agentes investigados pelos homicídios de dois homens dentro de uma casa na favela alegaram, em depoimento prestado no dia da ação, que só um tiro de fuzil foi dado por eles dentro do imóvel. O laudo de necropsia de uma das vítimas, no entanto, apresenta seis feridas causadas por projéteis disparados por fuzis. A operação no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, aconteceu em 6 de maio, deixando 28 mortos — entre eles, um policial civil, o inspetor André Leonardo de Mello Frias.
Isaac Pinheiro de Oliveira, de 22 anos, e Richard Gabriel da Silva Ferreira, de 23, foram mortos dentro de uma casa na Rua São Manuel por volta de meio-dia, quase ao término da ação. No fim da tarde do mesmo dia, os dois policiais que fizeram disparos dentro da casa prestaram depoimento na Delegacia de Homicídios (DH).
Os relatos dos dois na ocasião foram iguais, a maioria das frases nos depoimentos é idêntica. Ambos afirmaram que entraram na casa, após alertas de moradores, em busca de traficantes em fuga. No terceiro andar do imóvel, ao entrarem num cômodo, um dos policiais, o inspetor Alexandre Moura de Souza, lotado na 22ª DP (Penha), diz ter visto Richard Gabriel tentando sair do local portando uma arma e, por isso, atirou no homem “para se defender” com a pistola que usava.
O outro policial, Amaury Sérgio Godoy Mafra, da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), alegou que se posicionou ao lado do colega e viu Isaac empunhando uma pistola. Em seguida, o agente afirmou que, “para se defender, efetuou um disparo com seu fuzil AR10”. O disparo único de Mafra é corroborado pelo depoimento do colega prestado naquele dia. Por fim, os policiais alegam que apreenderam as duas pistolas que estavam com os homens.
Os laudos de necropsia das duas vítimas, no entanto, não batem com os relatos dos policiais. Segundo os documentos, o cadáver de Isaac — que os agentes afirmaram ter sido alvo de um disparo de fuzil — apresentava quatro feridas “provocadas por projéteis de baixa energia”, ou seja, disparados por pistolas ou revólveres. Já Richard foi atingido por seis tiros de fuzil — “lesões provocadas por projéteis de alta energia”: um no braço esquerdo, um no braço direito, um nas costas, um na barriga e dois nos peitos.
Na semana seguinte à operação, os policiais foram novamente à DH e fizeram mudanças sutis em seus relatos. Os novos depoimentos foram prestados no dia 13 de maio, após os exames cadavéricos ficarem prontos. Dessa vez, nenhum dos dois nomeou os alvos dos disparos que deram nem especificaram a quantidade de tiros. Amaury Mafra, que antes tinha dito ter feito um único disparo na direção de Isaac, afirmou, na segunda oportunidade, que, “no intuito de resguardar a vida dos colegas e a própria vida, efetuou disparo de arma de fogo na direção dos criminosos que estavam de pé, empunhando armas de fogo”. Alexandre Souza também disse ter atirado “na direção dos criminosos” e admitiu ter dado “mais de um disparo”.
No segundo depoimento, os dois policiais alegaram que, “pela rapidez da ação, não conseguem perceber se os criminosos efetuaram disparos” — ou seja, eles não acusam os mortos de terem puxado o gatilho, afirmam somente que ambos estavam portando armas. A perícia feita na casa não encontrou sinais de que houve um tiroteio no local — não havia marcas de tiros em sentidos opostos. Segundo o laudo de local de crime, “não foram encontrados vestígios claros e característicos de situação de confronto no interior do apartamento”.
Parentes dos dois homens mortos no local confirmam que eles integravam o tráfico do Jacarezinho, mas alegam que os jovens foram executados. "Meu filho e outros (homens) foram pegos vivos, eles se entregaram", afirmou Denise da Silva, mãe de Isaac, no enterro do filho.
A Polícia Civil informou que “só se pronunciará sobre as investigações no final, evitando qualquer antecipação”.