Sob o emaranhado de fios, quem cruza a Avenida Areinha, na favela de Rio das Pedras, parece passear por uma via coberta. Tanto “gato” de energia elétrica — que nas mãos das milícias também virou um negócio ilegal lucrativo — não é um cenário formado da noite para o dia, mas piorou no primeiro ano de pandemia.
De acordo com o último balanço da Light divulgado a investidores, as perdas não técnicas, eufemismo para designar fraudes e furtos de luz , atingiram o patamar mais alto dos últimos cinco anos. De abril de 2020 a março deste ano, foram desviados 7.134 gigawatt-hora (GWh), o suficiente para abastecer todas as casas do Espírito Santo por quase três anos.
O prejuízo é repassado aos demais usuários, o que faz do Rio um dos estados com energia mais cara do país. No caso da Light, que abastece 64% da população fluminense, mais da metade do fornecimento de baixa tensão — utilizada nas residências e pequenos comércios — é drenada pelos “gatos”. O percentual faz com que, das 27 unidades da federação, o Rio fique atrás apenas de Amazonas, Amapá e Pará em volume de repasse das perdas não técnicas.
O preço vem na conta de luz: ainda em 2019, os clientes atendidos pela Light já pagavam 9,5% a mais pela energia por esse motivo, revelam dados Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Já os consumidores da área de concessão da Enel, que distribui energia para 66 cidades do estado, incluindo municípios como São Gonçalo, sofreram um repasse na ordem de 4,4%. No mesmo período, a média nacional ficou em 3%. A agência agora compila os números de 2020, que devem ser divulgados até o fim do mês.
Enquanto isso, em Rio das Pedras, grande parte dos moradores não parece se preocupar com o custo da energia elétrica. Mas as consequências da pandemia também dão sinais.
"Preferia pagar a conta de luz direitinho, até para ter comprovante de residência. Mas fiquei desempregado na pandemia. Então, ficou tudo mais difícil", diz um morador, sob condição de anonimato.
Favelas têm mais perdas
A comunidade é uma das que aparecem em denúncias do Ministério Público do Rio (MPRJ) apontando que milicianos fizeram dos “gatos” mais um ramo de seus negócios escusos. Em 2019, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) descreveu relatos de que os paramilitares da região cobravam uma taxa de R$ 100 pelo “gato” de luz.
A própria Light já denunciou casos como de condomínios construídos pelos milicianos em Belford Roxo, na Baixada, em que os criminosos, além de furtar energia para os empreendimentos irregulares, cobravam taxa aos moradores por isso.
E onde o crime dá as cartas, indicam dados da Light, há mais furto de energia. Do total de perdas não técnicas, 62% foram registradas em áreas consideradas de risco pela companhia. Nas vielas do Vidigal e da Rocinha, por exemplo, favelas sob o jugo do tráfico de drogas, as ligações clandestinas estão por toda parte.
"O problema não é só da Light. Também é um problema de estado, pois envolve segurança pública e prestação de serviços. O estado tem que ser um aliado nesse processo", avalia Diogo Lisbona, pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (Ceri) da FGV.
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Na área da Enel, um levantamento feito pela concessionária ajuda a mensurar o prejuízo: nos três primeiros meses deste ano, a energia furtada seria suficiente para abastecer aproximadamente 890 mil residências durante o período de 12 meses.
Especialistas apontam dois possíveis motivos para o aumento do furto de energia na pandemia: o agravamento do desemprego, que pode ter levado consumidores a optarem por fazer ligações clandestinas para reduzir a conta de luz ; e a maior permanência das pessoas em casa durante o isolamento, que elevou o consumo residencial em toda a rede.
"Todo o país enfrenta os impactos econômicos acentuados pela pandemia da Covid-19. Isso influencia o nível das perdas não técnicas no setor", diz Denis Maia, CEO da Choice Technologies, líder global em redução de perdas na área de energia elétrica.
À frente da Delegacia de Defesa dos Serviços Delegados (DDSD), o delegado André Rosa Leiras afirma que, embora a maior quantidade de gatos ocorra em comunidades, esse é um problema que também de bairros de maior poder aquisitivo.
"Esse tipo de ocorrência é bem distribuído. Encontramos casos tanto nas comunidades mais pobres como nos bairros de classe média. A pena é baixa e, por ser um crime com fiança", afirma ele.
Nova estratégia
Quem for pego cometendo esse tipo de crime, no entanto, pode ser preso em flagrante ou responder a inquérito, com pena de um a quatro anos de reclusão, além de multa. A fiança nesse caso varia de um a cem salários mínimos.
Além disso, os “gatos” representam perigos para quem faz a instalação clandestina e para quem usufrui do serviço irregular, apontam especialistas. Doutor em Gerenciamento de Risco da Coppe/UFRJ, Gerardo Portela alerta para a possibilidade de acidentes que podem ir de choques elétricos a incêndios de grandes proporções.
Para tentar reverter esse quadro, a Light pretende criar iniciativas que aproximem a concessionária das favelas, como a contratação de mão de obra local para os serviços de leiturista e eletricista, gerando renda.
A companhia também planeja oferecer cursos sobre eficiência energética e transformar as associações de moradores em pontos de atendimento. O projeto inclui até a troca do “parque” de equipamentos gastões, como geladeiras e lâmpadas, por meio do Programa de Eficiência Energética da Aneel.
"Estamos chamando a sociedade, as instituições, o governo e as lideranças comunitárias para construirmos juntos um plano diferenciado que vai levar emprego, educação, cidadania e consumo eficiente a essa parcela da população", afirma o diretor presidente da Light, Nonato Castro.