Em 7 de abril, um tribunal de Istambul anunciou a transferência do julgamento de 26 pessoas acusadas de ligação com a morte do jornalista saudita Jamal Khashoggi, assassinado e esquartejado na cidade, em 2018, para a Justiça da Arábia Saudita, um movimento criticado por ativistas e pela família do dissidente.
Cerca de quatro anos antes, o crime provocara tensão entre Riad e Ancara, com declarações duras do presidente turco Recep Tayyip Erdogan e um boicote informal de produtos turcos por parte dos sauditas. Mas a decisão judicial, em tese influenciada pelo governo, se tornou um exemplo prático da guinada na política externa turca, movida por fatores regionais e internos.
"Esse movimento faz parte de um esforço de normalização das relações com os vizinhos iniciado em 2020, e não trata apenas da Arábia Saudita, mas também de Emirados Árabes e Egito, que adaptaram suas políticas em relação à Turquia", disse ao GLOBO Saban Kardas, pesquisador do Departamento de Ciências Políticas e Relações Internacionais da Universidade de Economia e Tecnologia TOBB, de Ancara.
O caso das relações com os sauditas é paradigmático. Os dois países vêm de mais de uma década de problemas, que chegaram ao ápice com a morte de Khashoggi dentro do consulado saudita em Istambul. Na época, Erdogan acusou a cúpula da monarquia saudita pelo crime, e disse que o incidente era uma séria ameaça à ordem mundial.
Em resposta, Riad deu início a um boicote informal de produtos turcos, uma política seguida por outras monarquias do Golfo Pérsico. Produtos como ovos, carnes e demais itens alimentícios sumiram das prateleiras sauditas, com impacto considerável para o setor exportador turco, no momento em que o país enfrentava uma séria crise econômica.
Hora da realpolitik
Contudo, nos últimos meses, a tensão vem dando lugar à aproximação. Em janeiro, o veto às importações turcas foi suspenso por Riad, e Erdogan anunciou que fará uma visita à Arábia Saudita em breve.
Em entrevista ao GLOBO, a pesquisadora Senim Cengiz, autora do livro “Turkish-Saudi relations: Cooperation and Competition in the Middle East” (”Relações Turquia-Arábia Saudita: cooperação e competição no Oriente Médio”), aponta que os dois países parecem ter propositalmente “esquecido” alguns dos pontos de tensão dos últimos tempos: além do assassinato de Khashoggi, ela cita o golpe em 2013 contra o presidente egípcio Mohamed Mursi, da Irmandade Muçulmana, que era apoiado pelo governo turco e sofria a oposição da monarquia saudita.
"O principal tema dessa nova era é a realpolitik, com os atores determinados a deixar as ideologias de lado", afirma Senim Cengiz.
Um dos fatores que contribuiu para a mudança de rumo foi a chegada de Joe Biden à Casa Branca: o novo presidente deixou claro que o Oriente Médio não seria sua prioridade. Assim, os governos regionais passaram a considerar mais vantajoso aparar arestas do que queimar pontes.
No campo doméstico, a crise econômica também forçou Erdogan a buscar investimentos no exterior. A inflação está em torno de 50% ao ano, e a pandemia, que afetou o turismo, ajudou a agravar um cenário que já era problemático antes. Desde 2017, a lira se desvalorizou em relação ao dólar passando de 3,64 para 14,69.
"A situação econômica precária e a necessidade saudita de fazer investimentos foi uma força nessa aproximação. Cultivar laços econômicos não apenas beneficia os dois lados, mas pode ser bom para interesses políticos e de segurança. Essa aproximação é politicamente lógica e economicamente proveitosa", diz Sinem Cengiz.
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Além dos sauditas, Erdogan trabalhou para reatar os laços com os Emirados Árabes Unidos: em fevereiro, ele fez a primeira visita ao país desde 2012, em busca de novos investimentos para seu país. Em outra viagem histórica, o presidente de Israel, Isaac Herzog, esteve em Istambul no começo de março — os dois países também estão em processo de reaproximação, depois de anos de troca de acusações por causa da ocupação israelense de territórios palestinos. Na ocasião, Herzog citou o potencial de cooperação em energia e segurança, chamando a visita de “ponto de virada”.
Mediação e Irã
Para Kardas, apesar dos problemas entre os dois países serem profundos, as tentativas de repará-los sempre estiveram ali, mas as condições não permitiam que o diálogo avançasse. Mesmo assim, ambos mantiveram os laços diplomáticos e as relações comerciais.
"Agora podemos ver mudanças no cenário interno [israelense], com um novo governo e uma nova liderança", disse Kardas, se referindo à saída de Benjamin Netanyahu do poder e a chegada da coalizão liderada por Naftali Bennett.
Ainda há pontos em aberto na questão palestina, com as negociações de paz paralisadas, e a respeito do status do Irã no Oriente Médio: apesar de divergências no conflito entre Azerbaijão e Armênia e naGuerra na Síria, Kardas aponta que Ancara e Teerã cultivaram um diálogo estável nos últimos tempos, que resistiu aos tensos anos Trump.
"Aqui não há necessidade de uma normalização, nós vemos algumas pessoas falando sobre algumas tensões, mas a cooperação entre Iraque e Turquia segue. São confrontos de baixa intensidade, não um confronto real, como os sauditas", disse Kardas.
Sem relação direta com esse realinhamento, a Turquia, que é membro da Otan, a aliança militar ocidental, também se colocou em um papel de facilitadora do diálogo entre Rússia e Ucrânia. Erdogan recebeu delegações dos dois lados em Istambul, no mês passado, mas o agravamento do conflito e as denúncias de crimes de guerra pelas forças russas congelaram as negociações por tempo indeterminado.
Neste caso, a Turquia exerce uma posição independente. Erdogan quer manter seu status de liderança internacional, mas não pode abrir mão da relação, especialmente a econômica, com a Rússia.
"Como um país que tem relações com os dois lados, ela se recusou a se juntar ao Ocidente nas sanções a Moscou, e seu espaço aéreo segue aberto aos aviões russos. Ao mesmo tempo, continuou a fornecer drones à Ucrânia, fechou seus estreitos a navios russos e condenou as ações russas na ONU", ressalta Cengiz.
Apesar disso, as relações com os EUA também melhoram: depois da tensão pela compra por Ancara do sistema de mísseis antiaéreo russo S-400, em 2019, o chanceler turco, Mevlut Cavusoglu, fará em 18 de maio a primeira visita a Washington de uma alta autoridade turca em três anos.
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