Antonia Urrejola com Gabriel Boric na posse do presidente chileno, em março. Na Nicarágua, diz ela, prioridade é libertação dos presos políticos
Reprodução 17/04/2022
Antonia Urrejola com Gabriel Boric na posse do presidente chileno, em março. Na Nicarágua, diz ela, prioridade é libertação dos presos políticos

Ela trocou a presidência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelo comando do Ministério das Relações Exteriores do governo de Gabriel Boric, que tomou posse em março no Chile, e levou para Santiago as mesmas bandeiras que levantou no âmbito da Organização de Estados Americanos (OEA), em Washington. Antonia Urrejola não titubeia na hora de alertar para retrocessos democráticos na América Latina.

“Valores que achamos que eram essenciais, indiscutíveis em nossas sociedades, começaram a ser discutidos de novo. Justificativas da tortura, de golpes de Estado, de violações dos direitos humanos, isso é algo preocupante em vários países da região”, afirmou ao GLOBO, quando questionada sobre a situação em três países: Brasil, Venezuela e Nicarágua. A chanceler chilena reconhece as divergências entre os governos Boric e Jair Bolsonaro, mas é enfática ao afirmar que “o Chile não pode virar as costas para o Brasil”. Uma de suas metas é promover uma voz única da região sobre temas como migração, segurança hemisférica e mudanças climáticas.

A primeira viagem internacional de Boric foi à Argentina, mas o presidente chileno ainda não falou com o presidente Jair Bolsonaro. Como será a aproximação com o Brasil?

Primeiro, acima das diferenças ideológicas, que são claríssimas, e às quais já se referiu o presidente, por exemplo no que diz respeito à Amazônia e às mudanças climáticas, sem dúvida o Brasil tem um peso demográfico, econômico e cultural na região. Portanto, além de ser um sócio comercial importante para o Chile, ninguém pode desconhecer a liderança do Brasil. É fundamental que tenhamos acordos, por exemplo, sobre questões migratórias. O Chile não pode virar as costas para o Brasil, pelo contrário. Obviamente, deve haver vontade de diálogo por parte dos dois governos. O presidente Boric já conversou com vários presidentes da região com os quais não compartilha ideologias. Falamos com os presidentes do Equador e do Paraguai sobre temas como narcotráfico e segurança, questões migratórias. Por enquanto não existe diálogo entre os presidentes [Boric e Bolsonaro], mas eu tive conversas bilaterais. Existem muitas diferenças, seria ingênuo não admitir isso, mas não podemos ter uma América Latina com uma única voz sobre assuntos comuns sem o Brasil.

O Chile poderia tentar um contato entre os presidentes?

Por enquanto não falamos sobre isso. O que não quer dizer que não estejamos trabalhando com o Brasil sobre temas em comum.

O fato de que o Brasil esteja em campanha eleitoral, e tendo o presidente Boric expressado seu apoio ao ex-presidente Lula, não facilita uma aproximação...

Sim, ninguém esconde as preferências, mas na posse de Boric, por exemplo, sentei ao lado do vice-chanceler do Brasil [embaixador Fernando Simas Magalhães, secretário-geral do Itamaraty] no almoço oferecido aos chefes de delegações estrangeiras e conversamos sobre diferentes assuntos. Também tive reuniões com o embaixador do Brasil no Chile. Temos diferenças políticas, mas como Chancelaria e como país continuamos tendo relações bilaterais com o Brasil e as conversas são fluídas.

O governo de Boric defende que a América Latina volte a ter uma única voz. Na recente votação na Assembleia Geral da ONU sobre a expulsão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos, o Brasil se absteve e a maioria dos países da região votou sim. Ainda parecemos estar longe dessa voz unificada…

O desejo do presidente é que pelo menos sobre os assuntos da nossa região e que nos afeta, possamos ter uma voz comum. Temas como migração, segurança hemisférica, mudança climática. A pandemia nos mostrou que existem desafios globais e regionais que exigem respostas coordenadas. Os efeitos da guerra na América Latina, a inflação, afetarão a todos. Também devemos buscar uma posição comum para enfrentar esse impacto. A solidariedade e cooperação serão importantes.

Qual é o âmbito em que tudo isso deve ser conversado? Hoje resta basicamente a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), da qual o Brasil se retirou...

De fato, a fragmentação nos fez desaparecer dos foros mundiais. Não é nosso objetivo criar mais organismos de integração, porque a experiência nos mostrou que, quando criamos organismos que respondem a certas ideologias, o que estamos fazendo é fragmentar mais a região. A ideia é reforçar os mecanismos existentes. Temos a Celac, espaço de diálogo político ao qual esperamos que o Brasil volte, e o Mercosul. Precisamos ter um espaço de diálogo na região, e isso se perdeu. A Cúpula das Américas [no início de junho, em Los Angeles] também pode ser um espaço. O que estamos fazendo é ter diálogos bilaterais para ir construindo essa agenda comum e, mais para frente, pensar numa reunião, como primeiro passo. Sabemos que é difícil num ambiente polarizado, mas esperamos poder ir construindo esse caminho.

Leia Também

A senhora disse que com a eleição de Boric o Chile acordou. O impacto da eleição chilena foi muito grande na região...

Conversamos muito sobre isso com o presidente, sobre as expectativas que a eleição chilena gerou, e ele sente isso como um desafio. É um reconhecimento, um desafio e um peso. O Chile gerou essas expectativas porque não somos um país isolado, e porque Boric representa uma liderança mais jovem, mais horizontal, mais empática. Houve muitos avanços na América Latina: a chegada da democracia, os avanços econômicos, mas de repente estagnamos no processo de avançar na direção de uma maior democratização. Ficamos adormecidos, mas as sociedades vão mudando. Por que o Chile gerou este impacto? Acho que é porque o presidente Boric soube fazer uma leitura correta dessas mudanças. Soube representar essas aspirações sociais. A sociedade estava pedindo mais direitos, mais participação. O desafio agora é continuar sendo esse tipo de líder e fazendo as leituras corretas. Não é por acaso que nos últimos três anos tivemos convulsões sociais não apenas no Chile, mas em Colômbia, Equador, Peru, no Brasil do seu jeito. O fator comum é um descontentamento social e uma falta da sensação de estar representados pelos que estão no poder, sejam de esquerda ou direita.

A senhora falou em avanços, mas na Nicarágua e na Venezuela as violações dos direitos humanos são permanentes. No Brasil, o governo ainda comemora o golpe de Estado de 1964...

O mais preocupante na região é que, depois dos avanços democráticos e de reconhecimentos de direitos, há alguns anos começamos a ver retrocessos, como são os discursos negacionistas, os discursos de ódio. Valores que achamos que eram essenciais, indiscutíveis, começaram a ser discutidos de novo. Justificativas da tortura, de golpes de Estado, de violações dos direitos humanos, isso é algo preocupante em vários países da região. Em muitos se relativiza os discurso dos direitos humanos, o outro é visto como alguém que não merece respeito. Os discursos depois se transformam em ações, e vemos isso em vários países, e o Brasil não é uma exceção. Outra coisa que também achamos que já era parte das regras de jogo, como a independência dos Poderes, passou a ser relativizada em alguns países. Os que acreditamos na democracia, sejamos de esquerda ou direita, temos um desafio enorme pela frente.

A Nicarágua é um país que preocupa especialmente, por sua experiência na CIDH?

Sim, e o próprio presidente foi explícito ao questionar as eleições em que o presidente Ortega foi reeleito, por considerar que não foram cumpridos padrões mínimos. Já como presidente eleito, Boric também se pronunciou sobre a morte de Victor Torres, que era um preso político. É um tema que conversamos, para ver como podemos, através de organismos multilaterais, ou bilateralmente, ajudar a resolver, entendendo que são os nicaraguenses os que devem resolver, mas que a comunidade internacional pode ajudar. Um tema fundamental é a libertação dos presos políticos.

No caso da Venezuela, o jogo parece ter mudado desde que o governo Biden enviou uma missão a Caracas.

Para o Chile é fundamental reativar o Grupo Internacional de Contato, um espaço de diálogo fundamental. Queremos ser parte disso.

Qual será a mensagem do presidente Boric na Cúpula das Américas?

Estamos trabalhando sobre a mensagem que queremos levar. Tenho certeza de que nossa posição será latino-americanista e também a favor da defesa do multilateralismo. Outra de suas bandeiras, sempre, é a defesa dos direitos humanos, em toda a região.

Entre no  canal do Último Segundo no Telegram e veja as principais notícias do dia no Brasil e no Mundo.

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!