Primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida
Reprodução/Twitter Fumio Kishida - 28.03.2022
Primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida

No dia 21 de março, um anúncio do governo russo pegou autoridades do Japão de surpresa: as negociações de um acordo de paz definitivo entre os dois países, relativo ainda à Segunda Guerra Mundial, estavam suspensas até segunda ordem. Era uma reação à participação de Tóquio nas  sanções internacionais relacionadas à invasão da Ucrânia , e Moscou disse que as conversas não poderiam ser mais realizadas diante de “posições abertamente não amigáveis e tentativas de atingir os interesses” do país.

“Toda a responsabilidade pelos danos à cooperação bilateral e aos interesses do próprio Japão é de Tóquio, que deliberadamente optou por um curso antirrusso em vez de desenvolver uma cooperação mutuamente benéfica e boa vizinhança”, disse o comunicado da Chancelaria da Rússia. Ainda foram congelados acordos de facilitação de vistos, projetos econômicos bilaterais, e o Japão foi incluído em uma lista de “nações não amigáveis”.

A resposta japonesa foi imediata.

"Toda a situação foi criada pela invasão russa da Ucrânia, e a decisão da Rússia de incluir essa questão nas relações com o Japão é injusta e completamente inaceitável" disse o premier Fumio Kishida.

Segundo o primeiro-ministro, a posição japonesa a respeito de um acordo de paz não seria alterada, assim como sua visão sobre a Ucrânia.

"O Japão precisa continuar a aplicar sanções sobre a Rússia, em cooperação com o restante do mundo."

O discurso acirrado, dos dois lados, marca um ponto crítico de inflexão nas relações entre países que, até recentemente, estavam contando os dias para pôr fim a uma página não resolvida da História: Rússia, sucessora da União Soviética, e Japão jamais assinaram um acordo de paz relativo à Segunda Guerra Mundial.

Ilhas em disputa

Kurilas foram ocupadas pelos soviéticos nos anos 1940, e japoneses querem retomar posse

No ponto central das negociações está o status de um conjunto de quatro ilhas, chamadas pelos russos de Ilhas Kurilas do Sul, e de Territórios do Norte pelo Japão — a área foi ocupada pelas forças da antiga União Soviética nos últimos dias da Segunda Guerra, e segue sob administração russa desde então. Nem mesmo a Declaração Conjunta Nipo-Soviética, de 1956, que estabeleceu as bases para a relação entre Moscou e Tóquio, apresentou soluções duradouras.

Segundo números do governo russo, há cerca de 11 mil pessoas vivendo no arquipélago, incluindo nas áreas em disputa. Em 2019, uma pesquisa realizada pelo instituto VTsIOM afirmou que 96% dos moradores da região rejeitavam a ideia de a administração passar para as mãos japonesas. Também há uma considerável presença militar russa na Ilha de Matua, que não é disputada pelos dois governos.

Em novembro de 2018, o então premier Shinzo Abe e o presidente russo, Vladimir Putin, chegaram perto de um acerto, que previa a devolução de duas ilhas para Tóquio, algo previsto na declaração de 1956, e que significava uma concessão importante para o governo japonês, que historicamente busca o controle das quatro ilhas. Para analistas, essa era “a melhor chance em mais de seis décadas” de um acordo.

A iniciativa fracassou dois anos depois, quando o governo russo endureceu sua posição sobre as fronteiras e tornou ilegal o ato de conceder parte do que considera ser território do país a outras nações. Tóquio e Moscou mantiveram, ainda assim, as portas abertas para o diálogo, tal como suas estáveis relações econômicas e diplomáticas.

Cenários diferentes

Mesmo em momentos recentes de pressão internacional contra a Rússia, como na anexação da Crimeia, em 2014, Tóquio buscou uma posição relativamente neutra, tratando o tema como um “problema do Ocidente”.

Pelo cálculo de Abe, apontam analistas, essa era uma ótima chance de manter Putin por perto e aumentar as chances de um acordo de paz entre os dois países. Mesmo quando adotou sanções na época, elas foram desenhadas de forma a manter os canais com Moscou.

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“As medidas parecem ter sido desenhadas com cuidado, desde o prazo de implementação até a escolha dos alvos, para permitir a coordenação com os EUA e a União Europeia e manter a porta aberta para o diálogo com a Rússia”, escreveu, em 2016, Daisuke Kitade, em artigo para o Instituto Mitsui de Estudos Estratégicos Globais.

Agora, em 2022, não houve espaço para moderação.

“Quando um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU pode agir de forma inconsequente, nessa escala, a resposta mais óbvia é a autodefesa coletiva”, escreveu, em artigo para a revista The Diplomat, Yukari Easton, pesquisadora com foco na Ásia e Pacífico. “O Japão, que tem disputas territoriais com a Rússia, precisa reafirmar e fortalecer sua segurança dentro do escopo do tratado de segurança com os EUA.”

As sanções, anunciadas em coordenação com os EUA, a elevação do tom das críticas às ações russas, e declarações de lideranças políticas sobre um reforço militar expuseram mudanças que já vinham ocorrendo no cálculo de Tóquio, não apenas em relação à Rússia, mas também em relação à vizinha China. Afinal, as recentes ameaças do governo chinês a Taiwan, vista como um território rebelde, e seu alinhamento com Moscou em temas estratégicos fizeram soar alertas.

No ano passado, o Japão participou do ressurgimento do chamado Quarteto, uma iniciativa formada também pelos EUA, pela Índia e pela Austrália, e que tem como ponto central a contenção dos avanços chineses na região.

Ao mesmo tempo, o país vinha elevando seus gastos com defesa: no fim de 2021, o orçamento para o setor já previa US$ 51,5 bilhões, quantia considerável para um país cuja Constituição veta o uso de Forças Armadas para fins que não sejam a autoproteção.

Com o novo contexto global, Tóquio se viu obrigada a mostrar ao Ocidente que estava firme ao seu lado, já prevendo potenciais problemas no futuro.

"Kishida foi chanceler no governo Abe, ele conhece política externa" afirmou ao site GZero o analista do Grupo Eurasia David Boling. "Ele sabe que a China representa uma séria ameaça de segurança nacional ao Japão, e o que está ocorrendo na Ucrânia pode ocorrer na sua vizinhança no futuro."

Carta nuclear

Recentemente, Shinzo Abe, que agora é parlamentar e parece ter se livrado das amarras cerimoniais do antigo cargo, tocou em um tabu para os japoneses: ele sugeriu que o país abrigue, em seu território, armas nucleares americanas, as mesmas que, décadas atrás, devastaram Hiroshima e Nagasaki. Kishida disse que tal sugestão era “inaceitável”, e analistas lembraram que o Japão está sob o “guarda-chuva nuclear” dos EUA, uma espécie de garantia de segurança dada a aliados de Washington.

Para Yoko Iwama, especialista em segurança e relações internacionais no Instituto Nacional de Graduação em Estudos Políticos do Japão, esse posicionamento não significa que Tóquio vá adotar uma postura agressiva com Pequim e Moscou, mas pretende mostrar que ações como a na Ucrânia na Ásia Oriental terão consequências.

"A razão de ser da resposta japonesa é enviar uma mensagem de que estamos prontos e de que vamos resistir, que não vamos permitir que nossas fronteiras sejam modificadas à força" afirmou Iwama à CNN, referindo-se à disputa entre Pequim e Tóquio pelas Ilhas Senkaku. "Não queremos uma guerra real, o objetivo é político: que a China seja persuadida a não realizar uma ação agressiva como a de Putin nos últimos dias e semanas."

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