As notificações de que as comitivas ucraniana e russa não haviam chegado a um acordo de cessar-fogo na primeira rodada de conversas nesta segunda-feira ainda estavam pipocando nos celulares quando veio a primeira explosão. Um som alto, forte. Diferente daqueles que estamos ouvindo desde quinta-feira, quando a Rússia começou sua invasão à Ucrânia . Logo uma outra, e mais outra. No horizonte, o céu ficou iluminado de um vermelho amarelado. Era fogo.
Logo, as sirenes começaram a soar esse som que faz lembrar os filmes da Segunda Guerra Mundial e que já se tornou estranhamente familiar para os quase três milhões de moradores de Kiev. Era o aviso de que novos ataques estavam próximos. As ruas ficaram rapidamente desertas novamente, como se o toque de recolher dos últimos dois dias tivesse voltado a vigorar como que de repente.
Ainda faltava uma hora e meia, mas pouca gente se atreveu a voltar para as ruas cada vez mais sombrias de Kiev no início de mais uma noite de tensão, expectativa e temor de que a guerra que é combatida a poucas dezenas de quilômetros daqui chegasse ao parque, à esquina, à porta de casa.
Esta foi uma segunda-feira fria e ensolarada em Kiev. Foram quase 48 horas de um toque de recolher ininterrupto, utilizado, segundo as autoridades ucranianas, para caçar “sabotadores” russos que estavam infiltrados na cidade. Às 8h em ponto os moradores de Kiev começaram a sair às ruas. Alguns para levar os cachorros a passear, outros em busca de comida nas raras lojas e nos mais raros ainda supermercados abertos. Carros voltaram a circular, muitos em busca de combustível, que havia acabado no sábado.
Ainda nas primeiras horas da manhã milhares de pessoas reiniciaram o périplo cada vez mais difícil para tentar deixar a Ucrânia em direção aos países da União Europeia. Com o transporte público funcionando apenas de forma parcial, muita gente circulava pela cidade com malas, mochilas, bolsas e tudo que pudesse levar. Seguiam em direção à principal estação de trem de Kiev. Mulheres, crianças, idosos e muitos estrangeiros, a maior parte deles estudantes, tentavam embarcar nos trens que seguiam para o Oeste do país.
— Tentamos por três dias, mas não conseguimos embarcar, estavam dando prioridade para os ucranianos — dizia um estudante indiano que não quis se identificar, por medo de represálias na longa jornada que teria pela frente.
Uma estudante nigeriana contava que também fora impedida de tomar um trem em direção à cidade de Lviv:
— Mas hoje acho que vamos conseguir, tem menos gente aqui.
O caos dos últimos dias, de fato, já não existe mais. Está agora na fronteira com a Polônia, onde milhares de ucranianos enfrentam filas que duram até três dias para conseguir cruzar a fronteira. A prioridade tem sido dada a mulheres e crianças. Homens com idade militar estão sendo impedidos de deixar o país e convocados para lutar.
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Muitos tentam fugir da guerra. Igor, um jovem de Slaviansk, no Leste do país, e que tem sido meu motorista desde o primeiro dia da invasão está decidido a deixar a Ucrânia.
— Vou para Varsóvia até que tudo isso acabe — contou ele na noite dessa segunda logo após as três bombas que caíram sobre Kiev. — Tenho medo da guerra.
Com apenas 22 anos, ele não sabe bem como vai poder deixar o país. Diz que amigos conseguiram atravessar a fronteira com a Moldávia. Igor conhece bem a guerra. Sua cidade, Slaviansk, fica a menos de 50 quilômetros da fronteira com as duas repúblicas separatistas de Luhansk e Donetsk, que, com apoio russo, seguem em guerra com a Ucrânia desde 2018.
Amigos, parentes, conhecidos, muita gente de seu círculo pessoal morreu, ficou ferida ou foi impactada de um jeito ou de outro por esse conflito.
— Não vou voltar mais para casa, não agora. Se você quiser, venha comigo, os russos vão cercar Kiev nos próximos dias, vamos embora enquanto temos chance.
A madrugada avança sobre Kiev calma. As bombas não caíram mais. Há relatos de combates na periferia norte da cidade. Batalhas rua a rua. Tanques e artilharia. Mas daqui do centro, não se ouve nada. A noite fria desse final de inverno está silenciosa.
A previsão do tempo é de que Kiev vai amanhecer nessa terça-feira coberta por uma camada espessa de neve. A capital ucraniana estará ainda mais bonita nesse início de uma semana que pode ser decisiva para este jovem país.
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