As tentativas do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de reverter o resultado da eleição de 2020 preocuparam tanto o chefe do Estado-Maior conjunto do país, Mark Milley, que o alto comando militar chegou a discutir planos para pará-lo em caso de uma tentativa de golpe. As revelações foram feitas em um livro que será lançado na semana que vem por Carol Leonnig e Philip Rucker, repórteres do Washington Post, cujos trechos foram obtidos com exclusividade pela CNN.
O livro "I Alone Can Fix It" (Eu Sozinho Posso Consertar Isso, em tradução livre) descreve como Milley e os chefes das Forças Armadas debateram a possibilidade de se demitirem, um a um, caso o presidente lhes desse ordens que considerassem ilegais ou perigosas para se manter no poder. Não está claro, contudo, em que momento o encontro teria ocorrido.
O militar mais graduado do país teria conversado sobre o assunto com amigos, parlamentares e colegas sobre a ameaça de um golpe e acreditava que precisava estar "vigilante" perante os riscos:
"Eles [Trump e seus aliados] podem tentar, mas não vão conseguir merda nenhuma", Milley teria dito a seus subordinados, segundo o livro. "Não é possível fazer isso sem as Forças Armadas. Não é possível fazer isso sem a CIA e o FBI. Nós somos os caras com as armas."
Os autores comparam o plano do alto comando militar a um "Massacre de Sábado à Noite ao reverso". Trata-se de uma referência ao episódio de outubro de 1973, quando o então presidente Richard Nixon deu ordens para que seu secretário de Justiça, Elliot Richardson, demitisse Archibald Cox, o procurador especial responsável por investigar o escândalo de Watergate. Richard e seu vice, William Ruckelshaus, se recusaram a fazê-lo e entregaram suas renúncias.
Leonnig e Rucker, que entrevistaram mais de 140 pessoas — entre elas Trump, por mais de duas horas —, narram em sua obra os bastidores do último ano do republicano na Casa Branca. O foco é as semanas entre o dia 3 de novembro, data da eleição, e a posse em 20 de janeiro, período no qual a cruzada do então presidente para reverter o voto popular submeteu à democracia americana ao seu maior teste de estresse na História recente.
As preocupações de Milley com as possíveis manobras do presidente, diz o livro, teriam se acirrado pouco após e eleição, com as trocas de comando no Pentágono, que puseram no poder aliados do presidente, a demissão do secretário de Defesa, Mike Esper, e a renúncia do secretário de Justiça, William Barr.
Após um mandato marcado pela promoção da agenda de Trump e por críticas de que teria corroído o Judiciário americano, Barr caiu na desgraça de Trump ao afirmar que não havia indícios de fraude no pleito, como o presidente dizia. Menos de duas semanas depois, em 14 de dezembro, ele deixou o cargo.
Nos dias anteriores à invasão do Capitólio, dizem os autores, Milley estava preocupado com a incitação que o presidente fazia de sua base, "dizendo para sua equipe crer que Trump estava fomentando distúrbios, possivelmente com a esperança de ter uma desculpa para invocar o Ato de Insurreição e acionar os militares".
O general referia-se a uma legislação federal de 1807 que dá ao presidente o poder de pôr soldados e a Guarda Nacional nas ruas em circunstâncias como insurreições, desordem ou rebeliões. De acordo com Leonnig e Rucker, Milley via Trump como "um líder autoritário sem nada a perder" e fazia paralelos entre ele a sua retórica e a de Adolf Hitler:
"Este é um momento Reichstag", ele teria dito, segundo o livro, referindo-se as declarações do presidente que o pintavam falsamente como a vítima de uma conspiração e como salvador dos EUA. "O gospel do Führer."
Às vésperas de uma marcha convocada pelo presidente para pouco após a eleição, chamando seus apoiadores para protestar contra a vitória de Biden, Milley teria comparado dito temer que os aliados mais ferrenhos do então presidente fossem os equivalentes americanos da "SA nas ruas". Era uma referência à Sturmabteilung, o grupo paramilitar que ajudou a levar Hitler ao poder.