Em uma votação histórica, a Câmara dos Deputados dos EUA considerou o presidente Donald Trump culpado de abuso de poder e obstrução do Congresso, em um processo de impeachment que pôs seu governo contra a parede, mas que tem poucas chances de removê-lo do cargo, dada a maioria governista no Senado, onde ele será julgado.
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A aprovação das acusações contra Trump não significa um início automático do julgamento no Senado, cujo rito não é detalhado na Constituição. O primeiro passo é a entrega formal das acusações para as lideranças do Senado. Depois, a Câmara deve escolher quem serão os reprentantes da Casa que atuarão como promotores. Não há previsão de quando isso será feito, mas acredita-se que seja ainda este ano.
No Senado , o plenário age como um júri, incluída a obrigação legal de imparcialidade, o que normalmente não é cumprido. Os representantes da Câmara são a acusação e o presidente terá direito à defesa. As sessões são presididas pelo chefe da Suprema Corte, John Roberts, mas sua autoridade não é total: se os congressistas decidirem, por maioria simples, derrubar ou adotar alguma decisão, esta passará a valer. Os senadores também terão o poder de convocar testemunhas e aceitar ou derrubar provas.
Ao final do processo, que não tem duração definida, as acusações serão votadas. Caso uma delas receba 67 votos, ou dois terços do total de senadores, o presidente será afastado, algo que jamais ocorreu nos dois julgamentos de impeachment anteriores, do democrata Bill Clinton em1988-1989 e de Andrew Johnson, no século XIX.
Votação política
Hoje, o Partido Republicano tem maioria no Senado, com 53 das 100 cadeiras. Mesmo que haja dissidências, o presidente provavelmente está a salvo. No processo de impeachment de Clinton , houve 10 dissidências entre os republicanos, então maioria. Ao final, ele foi inocentado.
Analistas políticos apostam que o processo no Senado só começará depois de janeiro, quando os congressistas retornam do recesso de fim de ano. Nos bastidores, fala-se em usar o processo contra Clinton como base. Richard Nixon, outro presidente a ser alvo de impeachment, renunciou antes da votação na Câmara .
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O líder da Comissão de Justiça do Senado, Lindsey Graham, um firme aliado de Trump, já disse que o julgamento deve ser "o mais rápido possível", pontuando que não apoia a convocação de testemunhas de acusação ou de defesa. O próprio Graham, porém, convidou, na semana passada, o advogado de Trump, Rudolph Giuliani , para comparecer à sua comissão. Giuliani é apontado como um dos principais personagens do impeachment, sendo um dos responsáveis pela diplomacia "informal" com a Ucrânia.
A votação desta quarta
Eram necessários 216 votos, maioria simples, para aprovar as duas acusações. Na primeira acusação, de abuso de poder, 230 deputados votaram a favor e 197 votaram contra, com duas dissidências entre os democratas, que têm maioria na Câmara. A segunda acusação, de obstrução, recebeu 229 votos a favor e 198 contra, com três dissidências democratas. Os deputados republicanos votaram em bloco contra as duas acusações, em mais uma evidência da polarização extrema que marcou o processo.
As acusações estão relacionadas às denúncias de que Trump teria pressionado o governo da Ucrânia para que investigasse o ex-vice-presidente Joe Biden , seu potencial rival nas eleições de 2020. O presidente, que estava em comício durante a votação, chamou o processo de "motim", dizendo que os democratas estão "consumidos pelo ódio" e que o único objetivo deles é "anular sua vitória nas urnas".
Primeiro presidente a disputar a reeleição em meio ao processo de afastamento, Trump está "obcecado" com o seu legado, segundo assessores citados pelo site Politico. De acordo com os relatos, o republicano gostaria de ser lembrado como um dos maiores líderes da História americana — ao invés disso, passará a integrar a reduzida lista de presidentes julgados pelo Congresso.
"Violou a Constituição"
A sessão de debates antes da votação foi aberta pela presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, com um discurso pesado contra Donald Trump.
"Ele não nos deu escolha. O que estamos discutindo aqui hoje é o fato estabelecido de que o presidente violou nossa Constituição. É fato que o presidente é uma ameaça constante à nossa segurança nacional e à integridade de nossas eleições — bases de nossa democracia — afirmou ao plenário. — Se não agirmos agora, teremos abandonado nossos deveres. É uma tragédia que as ações inconsequentes de nosso presidente façam do impeachment uma necessidade", afirmou Pelosi.
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Ao longo das mais de seis horas de debate, a profunda divisão política nos EUA
se fez presente. Em defesa de Trump, Doug Collins, republicano mais graduado na Comissão de Justiça, afirmou que este é "um impeachment baseado na presunção".
Chris Stewart, deputado republicano de Utah, disse que o processo "não tem a ver" com abuso de poder e "tem alguma relação" com obstruir o Congresso, mas, para ele, o voto desta quarta tem a ver apenas com o fato de os democratas "odiarem" o presidente.
"Eles querem tirar meu voto e jogá-lo no lixo. Querem tirar meu presidente e deslegitimá-lo para que não consiga ser reeleito", disse Stewart.
A resposta veio pela democrata Sheila Jackson: "eu não odeio nenhuma mulher e nenhum homem".
O democrata Al Green discursou ao lado de uma foto de uma criança imigrante que chorava diante de oficiais de fronteira. Para ele, seu voto "sim" era em nome da democracia. Barry Loudermilk, republicano da Geórgia, apelou para a Bíblia ao dizer que Jesus Cristo teve um julgamento mais justo nas mãos de Pôncio Pilatos.
Nos últimos momentos do debate, o líder da minoria republicana, Kevin McCarthy, disse que esse foi o impeachment com "menor credibilidade da história".
"Este é o seu legado", disse ele aos democratas. "Qualquer promotor neste país perderia sua licença por conta desse viés, especialmente se tivesse testemunhas, um juiz e um júri", afirmou McCarthy.
Já o líder da maioria, Steny Hoyer, disse que seu partido não queria o processo, mas foi obrigado a levar as acusações adiante: "a conduta do presidente Trump forçou nossa República constitucional a se proteger".
Clímax da investigação
A votação foi o auge de semanas de audiências, análises de documentos e ofensas de Trump aos deputados democratas responsáveis pelas investigações que resultaram nas duas acusações. O ponto central era a relação do presidente com a Ucrânia, e seus pedidos para que o governo do país lançasse um inquérito sobre os negócios da família do ex-vice-presidente Joe Biden no setor de gás ucraniano. Trump chegou a reter quase US$ 400 milhões em ajuda ao país europeu.
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Após um relatório elaborado pela Comissão de Inteligência, a Comissão de Justiça delimitou que Trump deveria ser acusado de abuso de poder e obstrução do Congresso. A última acusação refere-se ao fato de o presidente ter se negado a fornecer documentos à Câmara e ter instruído funcionários do governo a não deporem na Casa.