Cerca de 1 milhão de pessoas vestidas de preto vêm se reunindo nas ruas de Hong Kong, desde o começo do mês, em protestos que têm se apresentado como um dos maiores conflitos entre o território autônomo e a China nos últimos 20 anos.
A multidão que reúne desde jovens a idosos, carregando cartazes e cravos, pede pelo fim da lei de extradição , conhecida como “lei dos foragidos”. Caso aprovada, qualquer pessoa que estiver em Hong Kong e for procurada por certos crimes poderá ser enviada para a China e Taiwan, a fim de que seja julgada.
A lei foi proposta pela chefe do Executivo do território, Carrie Lam, após o debate ter sido desencadeado pelo caso de um jovem nascido em Hong Kong, chamado Chan Tong-kai, que é suspeito de ter assassinado a namorada grávida enquanto ambos passavam as férias em Taiwan, no ano passado.
Devido à inexistência de um acordo de extradição com a China e Taiwan, Chan – que foi capturado em Hong Kong – não pode ser enviado para outra região para ser julgado e também não pode enfrentar julgamento dentro de Hong Kong, já que o território não tem jurisdição sobre crimes cometidos em Taiwan.
De acordo com o governo local, a lei precisa ser aprovada até julho para impedir que o suspeito seja solto antes do seu julgamento, mesmo após Taiwan ter afirmado que não fará pedido de extradição caso a aprovação aconteça.
Qual é a justificativa do governo?
Desde que o território foi devolvido à China pelo Reino Unido, em 1997, Hong Kong tem um ordenamento político, jurídico e administrativo próprio com a fórmula de “um país, dois sistemas”.
De acordo com comunicado divulgado pela Associação de Advogados de Hong Kong, na época, uma lei de extradição não foi aprovada entre o território e a China porque Hong Kong sempre teve “um judiciário fundamentalmente diferente”, além de haver preocupação em relação ao “histórico chinês de proteção aos direitos fundamentais”.
Atualmente, as autoridades locais argumentam que a medida é necessária para que Hong Kong não vire um refúgio para criminosos. De acordo com Carrie Lam , que é apoiada pela China, caso uma nova legislação seja aprovada, estariam assegurados os direitos humanos dos extraditados e os procedimentos justos seriam colocados em prática, incluindo a proteção contra a pena de morte e o veto a extradições sob acusações políticas.
Além disso, o governo de Hong Kong garante que a lei de extradição só seria aplicada em crimes puníveis com sete ou mais anos de prisão e que só seriam aceitos os pedidos feitos por autoridades da China Continental, Taiwan e Macau, sendo que cada caso seria analisado isoladamente.
Porém, a população teme que aconteça o contrário.
Por que a lei vem gerando revolta?
Segundo o doutor em Ásia e coordenador do Centro Brasileiro de Estudos e Negócios Internacionais (CBENI) da ESPM, Alexandre Uehara, o projeto de lei permitiria que as pessoas extraditadas fossem punidas dentro da China sob a jurisdição de Pequim e esse é o principal ponto de conflito.
“O medo é de que Pequim comece a interferir nos assuntos políticos de Hong Kong. O receio é de que a China comece a usar isso de maneira política e comece a extraditar pessoas por motivos políticos. Há o medo até de que se tenha uma retaliação”, explicou o professor.
Para os manifestantes , a nova legislação poderia dar margem a diferentes interpretações e passaria a ser usada por Pequim para expor e processar aqueles que criticam seu governo. De acordo com Uehara, o receio é de que esse seja o “primeiro passo” para que a China passe a ter maior controle político e social sobre Hong Kong e, por isso, tantas pessoas se opõem ao projeto. “Hong Kong tem 7 milhões de pessoas e cerca de 1 milhão estão nas ruas protestando. Essa é uma parte significativa da população.”
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Além disso, empresários ainda temem a possibilidade de que a lei prejudique a imagem internacional de Hong Kong e a atratividade do centro financeiro, apesar de o secretário das Finanças, Paul Chan, ter afirmado que os mercados financeiros e econômicos de Hong Kong ainda estão operando de “maneira estável e ordeira”.
A "nova" Revolução dos Guarda-Chuvas?
Apesar da diversidade de pessoas que formam o grupo contrário à lei de extradição, a maioria dos opositores é composta por jovens, já que eles são os mais preocupados com o futuro de Hong Kong sob a influência da China, segundo Uehara.
Após quatro dias de protestos , que começaram no dia 9 de junho, uma nova manifestação já foi marcada para esta quarta-feira (26), antes da cúpula do G20 no Japão. Os últimos confrontos foram marcados pelo recorde de manifestantes e pela repressão policial por meio do uso de cassetetes, gás lacrimogênio e gás de pimenta.
Essa não foi a primeira vez que manifestantes encheram as ruas de Hong Kong para realizar grandes protestos políticos. Em 2014, manifestações pró-democracia ficaram conhecidas por “Revolução dos Guarda-Chuvas”, já que a população usava o objeto para se proteger da repressão dos policiais.
Na época, os protestos – que se estenderam durante 79 dias – defendiam eleições livres e o fim do controle de Pequim sobre os candidatos ao Parlamento local. Segundo as estimativas da oposição, os protestos que estão acontecendo agora em Hong Kong já são maiores do que os que aconteceram em 2014.
Na noite da última sexta-feira (21), milhares de manifestantes cercaram e bloquearam a entrada da sede da polícia de Hong Kong, com a exigência de que os policiais assumissem a responsabilidade pela dispersão forçada dos manifestantes que bloquearam a sede do governo no dia 12 de junho.
De acordo com a imprensa local, o protesto de sexta paralisou o tráfego em partes da cidade, bloqueou estradas e prédios do governos de Hong Kong foram ocupados. Além dos pedidos para que a polícia fosse responsabilizada, os manifestantes também exigiram que a retirada do projeto de lei fosse definitiva e que Carrie Lam renunciasse ao cargo de chefe do Executivo.
Para Uehara, a repressão policial e a reação da população em relação a isso são dois dos principais pontos com os quais a China deve se preocupar. “Os manifestantes estão reclamando da atuação violenta dos policiais e até pedem que os envolvidos sejam punidos. A China tem que tomar cuidado com essa repressão aos manifestantes, porque isso pode até gerar mais manifestações ”, explicou.
Em resposta aos protestos, o porta-voz da diplomacia chinesa, Geng Shuang, chamou as manifestações de “distúrbios organizados” e afirmou que Pequim “apoia a reação” das autoridades de Hong Kong.
O pequeno recuo de Lam
Os manifestantes tiveram uma pequena vitória, na última semana, quando Lam foi a público pedir desculpas pelo tratamento dado ao tema da extradição e afirmar que a discussão sobre o projeto seria suspensa indefinidamente. Segundo Uehara, a ação da população em cercar o Parlamento foi o que fez com que o governo recuasse, já que seria um risco realizar qualquer discussão e votação naquele momento.
Ainda de acordo com o professor, esse recuo também foi uma forma de diminuir as tensões na semana que antecedia a cúpula do G20, que será realizada nesta sexta-feira (28). Em confirmação a isso, o Ministro assistente de Assuntos Exteriores, Zhang Jun, afirmou, nessa segunda-feira (24), que a China não vai permitir que os recentes protestos sejam discutidos durante o fórum em Osaka, no Japão. De acordo com o ministro, a cúpula é voltada para a economia dos países que compõem o grupo e, por isso, o foco da China serão os comércios e os negócios.
Apesar do que parece ser um momento de alívio, Uehara diz acreditar que o fim do debate sobre a lei de extradição não está próximo. Tal ponto foi até confirmado pela própria Lam, que garantiu que o projeto não sairá de pauta, já que ele seria necessário para consertar uma “brecha” na legislação.
Além disso, a chefe do Executivo também negou os pedidos de renúncia e afirmou que se manterá no cargo. “Ela não deve renunciar e, se renunciar, quem deve entrar no governo será pró-Pequim também, o que não mudaria nada”, explicou o professor.
Em relação ao projeto de lei, Uehara afirmou que a maior possibilidade é de que ele seja realmente aprovado, já que o Parlamento de Hong Kong também é apoiado por Pequim e, assim como aconteceu nos protestos de 2014, o governo não voltou atrás em sua decisão, apesar das manifestações. Segundo o professor, após os novos protestos que já estão marcados para acontecer, o governo deve esperar só a “poeira abaixar” para voltar a discutir sobre a lei de extradição.