O discurso de ódio contra os jornalistas se transformou em violência, o que levou a um aumento do medo em exercer a profissão no mundo. É o que mostra a edição de 2019 do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, publicado nesta quinta-feira (17) pela organização Repórteres sem Fronteiras (RSF).
Leia também: Bolsonaro defende liberdade de expressão em meio a críticas ao STF
Ameaças, insultos e agressões fazem agora parte dos “riscos ocupacionais” da profissão dos jornalistas em muitos países, incluindo o Brasil, que caiu três posições no ranking e ocupa o 105º lugar, cada vez mais próximo da zona vermelha da classificação (que indica situação difícil para profissionais de imprensa).
"Se o debate político desliza, de forma discreta ou evidente, para uma atmosfera de guerra civil, onde os jornalistas se tornam bodes expiatórios, os modelos democráticos passam a estar em grande perigo", alerta Christophe Deloire, secretário geral da RSF.
"No Brasil, a eleição de Jair Bolsonaro em outubro de 2018, após uma campanha marcada por discursos de ódio, desinformação, ataques à imprensa e desprezo pelos direitos humanos, é um prenúncio de um período sombrio para a democracia e a liberdade de expressão no país", afirma o documento.
“Em um país onde dois terços da população se informam pelas redes sociais, a plataforma de mensagens WhatsApp desempenhou um papel central na campanha (...) e tomou o lugar das fontes tradicionais de informação”, diz o relatório. “Nesse contexto tenso, os jornalistas brasileiros tornaram-se um alvo preferencial, e são regularmente atacados por grupos disseminadores de ódio, especialmente nas redes sociais.”
Na Venezuela, a situação é igualmente preocupante. Este ano, o país perdeu mais cinco posições e se aproxima perigosamente da parte mais baixa do ranking, em 148º lugar. Em 2018, a repressão se intensificou contra a imprensa e a RSF registrou um número recorde de detenções arbitrárias e casos de violência contra repórteres praticados por forças de segurança e pelos serviços de inteligência.
"Houve uma migração em massa de jornalistas mais jovens" explicou ao jornal O Globo a jornalista Luz Mely Reyes, uma das criadoras do site Efecto Cocuyo. "Além da crise do modelo jornalístico, que é internacional, e da crise econômica interna, há perseguição e censura prévia, levando muitos profissionais a deixarem o país".
Leia também: Estado brasileiro é denunciado à OEA por violência contra jornalistas
No ano passado, a Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel) da Venezuela ainda suspendeu o sinal de canais de rádio e televisão considerados muito críticos, e dezenas de jornalistas estrangeiros foram detidos, interrogados e deportados. A deterioração da situação levou muitos profissionais de imprensa a deixarem o país para fugir de ameaças e preservar sua integridade física.
Este ano, o continente americano registrou a maior degradação do indicador regional, um resultado que não se deve apenas ao mau desempenho no Brasil e na Venezuela, mas também em países como Nicarágua e até Estados Unidos, hoje em 48º lugar no ranking. O país, onde um clima cada vez mais hostil se instalou na esteira da postura do presidente Donald Trump frente aos meios de comunicação, perdeu três posições em 2019 e caiu na zona laranja, onde se situam nações consideradas problemáticas para o exercício do jornalismo.
O ódio aos meios de comunicação é tanto que, em Maryland, um homem abriu fogo deliberadamente na redação do diário local de Anápolis, The Capital Gazette
, deixando cinco mortos. O assassino havia compartilhado amplamente a sua raiva do jornal nas redes sociais.
“Os jornalistas americanos nunca haviam sido alvos de tantas ameaças de morte. Tampouco tinham recorrido a empresas privadas para garantir sua segurança”, alerta o documento da RSF.
A Nicarágua, que caiu 24 posições, sofreu uma das quedas mais significativas em 2019. Lá, os jornalistas que cobrem os protestos contra o governo de Daniel Ortega, vistos como oponentes, são frequentemente agredidos. Muitos deles foram forçados ao exílio para escapar de ameaças e acusações de envolvimento com o terrorismo.
O continente abriga também um dos países mais mortais do mundo para exercer a profissão, o México, onde pelo menos dez jornalistas foram assassinados em 2018. Entretanto, a chegada ao poder do presidente Andrés Manuel López Obrador, em dezembro de 2018, após uma campanha eleitoral marcada por numerosos ataques a jornalistas, acalmou em alguma medida as relações entre o poder público e a imprensa mexicana, mostra o relatório. A transição política, junto a uma diminuição relativa no número de assassinatos no país (onze casos em 2017), justificam um ligeiro avanço do país no ranking, subindo três posições.
Leia também: Francês é condenado a um ano de prisão por negar existência de Holocausto
Na Europa, ataques verbais contra a profissão e uma retórica antimídia de maneira geral também estão cada vez mais presentes em muitas democracias, indica o texto publicado nesta quinta-feira. “Os jornalistas são declarados indesejados, ameaçados, insultados por personalidades que estão no mais alto nível do poder”.
A tendência está crescendo, particularmente na França, onde o líder do partido France Insoumise, Jean-Luc Mélenchon, declarou que o ódio aos jornalistas era “saudável e justo”.
No país, o ódio à mídia, uma das principais características da raiva dos “coletes amarelos”, é a ilustração mais preocupante disso, e foi brutalmente manifestada com agressões e intimidações sem precedentes. Uma repórter da “La Dépêche du Midi“ chegou a ser ameaçada de estupro e insultada por uma horda de manifestantes revoltados em Toulouse em janeiro.
O documento da RSF mostra ainda que o número de países onde os jornalistas podem exercer com total segurança sua atividade profissional continua diminuindo, enquanto os regimes autoritários reforçam seu controle sobre os meios de comunicação. É o caso da Rússia, em 149º lugar, onde o Kremlin aumentou a pressão contra a mídia independente na Internet, com prisões, buscas arbitrárias e leis mordaças.
Leia também: Discurso de ódio no Facebook reflete nos índices de crime de ódio, diz pesquisa
A África, por sua vez, teve a menor degradação regional da edição de 2019 do ranking. Uma mudança de regime permitiu que a Etiópia esvaziasse suas prisões de jornalistas e desse um salto espetacular de 40 posições. Foi também uma alternância política que permitiu a Gâmbia apresentar uma das altas mais importantes do relatório, subindo 30 posições.