Agência Pública

Grupo se reúne para proteger a Wikipédia do negacionismo climático
Laura Scofield
Grupo se reúne para proteger a Wikipédia do negacionismo climático

Eles não se conhecem para além do primeiro nome, nunca se falaram pessoalmente, mas trabalham juntos há anos protegendo do vandalismo a página sobre “ mudança climática ” da maior enciclopédia pública da internet. 

Um grupo de sete editores é o maior responsável pelo verbete ser considerado como um dos melhores da Wikipédia em inglês. O grupo é liderado pela incansável holandesa Femke Njisse. “Eu sei os nomes deles, mas nunca vi ninguém pessoalmente”, contou à Agência Pública .

Femke pesquisa assuntos relacionados ao clima na Universidade de Exeter, Reino Unido, e começou a editar a enciclopédia por considerar as páginas desatualizadas ou com “muito espaço” para a “ negação do clima ”. 

“Ela edita quase todos os dias. É quem realmente mantém a página funcionando e avançando”, afirmou à Pública o também editor David Tetta. 

Há alguns meses, Tetta identificou uma tentativa de vandalizar o artigo: um editor de esportes havia escrito que a “ mudança climática é uma farsa ”, logo no início da página. Os ataques já foram tão frequentes que a Wikipédia protegeu o verbete, estabelecendo restrições para editá-lo.

O verbete protegido tem mais de 57 mil caracteres e foi visitado 393.333 vezes nos últimos 90 dias, com média de 4.322 visitas diárias. Em 2019, o total de visualizações do artigo passou de 1 milhão e meio. Desde julho de 2015 foram contabilizados mais de 7 milhões de acessos às páginas.

Além dele, há mais de 2 mil verbetes sobre temas relacionados que são editados por 42 voluntários reunidos no WikiProject Climate Change, uma plataforma de trabalho colaborativo. Lá se determinam regras, prioridades e forças-tarefa como a africana “ Africa Task Force ”, que aborda mudança climática focalizando as relações com o continente.

Criada em 2001, a Wikipédia é uma enciclopédia on-line e pública que existe em mais de 300 línguas. São os editores voluntários que decidem todas as regras, sejam de convivência interna ou edição dos artigos. Como afirma seu lema, “ todos podem editar ”, e o que guia a tomada de decisões é o consenso entre seus editores. 

“Trump vai passar, a Wikipédia fica”

A holandesa Femke virou editora da Wikipédia há sete anos, ajudando a melhorar artigos sobre a participação feminina na ciência. Sua primeira edição sobre mudança climática foi uma atualização: em 9 de março de 2014, corrigiu uma informação que afirmava que o Protocolo de Kyoto expiraria em 2012. Ela atualizou a página, afirmando que a medida que buscava redução das emissões de gases-estufa já havia expirado. 

As edições foram se tornando cada vez mais constantes – tanto que ela já modificou 19% do verbete. “Gasto tempo demais”, confessa, entre risadas, à Pública. “Eu mais frequentemente corrijo informações e me certifico de que tudo está conciso”, descreve. 

“A mudança climática é uma das maiores ameaças ao mundo de hoje. É algo que deixa as pessoas ansiosas, que já está ocorrendo, e existem pessoas com muito dinheiro lutando contra”, diz o engenheiro David Tetta, que iniciou sua atuação no verbete há cerca de um ano e meio. Tetta trabalhou por mais de 34 anos na Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA) e já ministrou aulas na Universidade de Washington sobre o tema. “As possíveis consequências são catastróficas”, resume. 

Já Marcelo*, que preferiu não ter o nome completo publicado, foi sucinto ao descrever suas motivações: “ O Trump vai passar, mas a Wikipédia fica ”. Ele atua na Wikipédia desde 2009 e afirmou ter feito mais de 12 mil edições. 

“Eu espero que a Wikipédia convença as pessoas de que alguns políticos, como Trump, Bolsonaro e outros, estão simplesmente errados. As pessoas influenciam o governo, e a ação do governo é necessária para reduzir a mudança climática”, falou à reportagem. 

“Quase todos os editores da página são muito inteligentes, cuidadosos e respeitosos. Muitos têm base científica e técnica. Desacordos são quase sempre civis. Ocasionalmente surge um editor irracional, mas eles não ficam muito tempo”, diz Marcelo. 

Femke segue a mesma linha: “A equipe está realmente interessada em trabalhar em conjunto. Se discordamos sobre algo, é sempre uma discussão muito racional, sempre seguimos as regras de como decidir as coisas”.

Vandalismo 

“Eu entrei lá e deletei”, contou Tetta sobre o ato de vandalismo e negacionismo climático que encontrou na página no último ano. A afirmação “ global warming is a hoax ” [o aquecimento global é uma farsa] havia permanecido por algumas horas, e foi possível mesmo com a proteção do artigo, já que o então vândalo era um editor frequente de outros verbetes da Wikipédia. 

O caso recente mostra que mesmo as restrições da enciclopédia podem deixar passar ataques. Em um artigo semiprotegido como o “Climate change”, só conseguem editar usuários com contas criadas há no mínimo quatro dias e ao menos dez edições feitas, o que reduz o vandalismo, mas não o barra completamente. 

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A proteção foi instituída justamente para impedir os ataques, como contou Femke: “Se você olhar no histórico, para o que a página era em 2008, você pode ver que era horrível e existia muita negação do clima e muitas discussões nada civis”, explica. Hoje as medidas de proteção e a existência de uma “comunidade vibrante” tornam o vandalismo “raro” na página principal. 

Na Wikipédia em português, as páginas de Jair Bolsonaro, Golpe de Estado no Brasil em 1964 e Guilherme Boulos estão protegidas; as biografias de Lula e Dilma, por exemplo, não. A proteção impera também no verbete “Aquecimento global”, o principal em português que trata do tema climático. 

A enciclopédia colaborativa tem também outras medidas que visam impedir o vandalismo, como a utilização de robôs, além da política de bloquear usuários anônimos e contas que incluem erros deliberadamente. Alex Stinson, da Wikimedia Foundation, estima que entre 85% e 90% dos ataques são identificados por softwares da companhia. 

“Na maior parte do tempo, o vandalismo é percebido em pouco tempo . Quanto mais destacado é um artigo, mais pessoas o acessam, vigiam e editam, então é mais fácil reverter”, contou o representante. Porém, em páginas menos vigiadas, os atos podem permanecer por dias. 

O empenho dos editores é motivo de orgulho para a Wikimedia Foundation, que gerencia a enciclopédia colaborativa. “Nossos voluntários são alguns dos mais apaixonados e precisos compartilhadores de conteúdo que poderiam ser encontrados”, afirmou à Pública Stinson.

A página “Climate change” já foi editada 24.666 vezes, por 5.042 editores, voluntários desde que foi criada, em 2001. Em dezembro, 30 editores modificaram o artigo 261 vezes.  

Na seção de perguntas frequentes do artigo, pelo menos 17 entre 24 questões duvidam dos fatos e da responsabilidade humana sobre o clima. “Existe realmente um consenso científico sobre as mudanças climáticas?”, é a primeira pergunta. 

“Sim”, respondem enfaticamente os editores. 

O maior editor no Brasil 

A Wikipédia em português, que inclui público de países como Brasil, Angola, Moçambique e Portugal, tem mais de 1 milhão de artigos. 

A página “Aquecimento global” foi visitada 91.183 vezes nos últimos três meses, o que gera uma média diária de 1.002 visualizações. Em 2019, contabilizou mais de 810 mil acessos.

Ricardo André Frantz, que assina como Tetraktys, é o principal editor do artigo em português, responsável por 64% das edições e mais de 50% do volume de texto de quase 150 mil caracteres. “O artigo do aquecimento global foi visitado nos últimos 12 meses por mais de 490 mil pessoas ! Qual professor ou pesquisador ou palestrante tem acesso a um público como esse?”, pondera.

Ele considera que “a ciência tem sido posta em xeque pelo governo, cujos principais representantes, junto com boa parte da bancada do Congresso e nos legislativos e executivos estaduais e municipais, são negacionistas do problema climático”, o que também o motivou a editar. 

Em português, “Aquecimento global” é artigo destacado e protegido, como “Climate change”. Quem busca o tema na Wikipédia lusófona, portanto, sai com uma visão baseada nas evidências científicas e pouco espaço para o negacionismo, segundo concluiu o pesquisador Bernardo Esteves, que analisou os verbetes relacionados aos temas de mudança climática na Wikipédia em português.


Nem sempre foi assim. Quando Frantz começou a editar, “[o artigo] sofria muito vandalismo por editores anônimos, que tentavam impingir uma relativização indevida dos fatos. Ou apresentavam o tema como uma simples teoria sem comprovação, ou o negavam de todo”, segundo ele lembra.

Agora, o maior perigo é que dependemos da boa vontade dele. “E se o Tetraktys perder o interesse, desistir de editar a Wikipédia, ou algum motivo qualquer, será que aqueles artigos vão continuar bons daqui a uns dois anos? Será que alguém vai pegar essa função?”, questiona Esteves. A Wikipédia em inglês tem 12 vezes (129,081) mais contribuintes do que a lusófona (10.527).

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