Shiri, o marido Elad e seus quatro filhos
Arquivo pessoal
Shiri, o marido Elad e seus quatro filhos


Shiri Aviv e seus filhos – com idades entre 2 e 8 anos – vivem no kibbutz Ein Hashloshá, a 2,5 quilômetros de Gaza, e permaneceram sem comunicação dentro do quarto de segurança de sua casa por 26 horas.  

Shiri Aviv é diretora comunitária de Ein Hashloshá, kibbutz com 360 habitantes – entre eles, 92 crianças – localizado a 2,5 quilômetros de Gaza. No dia do ataque do Hamas ao sul de Israel, 7 de outubro de 2023, entrou com seus filhos no quarto de segurança da casa às 6h30 da manhã e só saiu dele 26 horas depois. Seu marido, Elad, viajara às 5h45 para praticar tênis em uma cidade vizinha. Durante todo esse tempo, ele não sabia se sua família havia sobrevivido à invasão de cerca de 150 terroristas do Hamas.

Muitos membros da família de Shiri vivem em uma mesma vizinhança do kibbutz: a irmã, com marido e uma filha pequena, seus pais e também seu irmão, casado com dois filhos. Das 320 casas do kibbutz, 56 foram atacadas, outras sete foram completamente destruídas e quatro, totalmente incineradas. Além da onda de terroristas, o Ein Hashloshá foi também invadido por civis palestinos. Segundo Shiri, todas as casas foram assaltadas. Até mesmo lingeries foram roubadas. “Claro que o material é menos importante do que as vidas humanas, mas esse aspecto é pouco comentado aqui e no mundo – e diz muito a respeito do que aconteceu”, afirma Shiri. 

Kibbutz Ein Hashloshá, invadido pelo Hamas, onde Shiri vive com sua família
Arquivo pessoal
Kibbutz Ein Hashloshá, invadido pelo Hamas, onde Shiri vive com sua família


Vale citar que, no mapa encontrado no corpo de terroristas mortos, apenas duas residências estavam sinalizadas para serem atacadas – a dela e a do coordenador da equipe de segurança do kibbutz, um dos quatro residentes assassinados naquele dia. Apesar do trauma e do longo caminho de recuperação que vem pela frente, todos os seus familiares sobreviveram. Essa é sua história.

Conte-nos o que aconteceu a partir de 6h30 da manhã do dia 7 de outubro.

Meus filhos dormem justamente no quarto de segurança de minha casa. Assim, quando começaram a soar as sirenes alertando sobre os mísseis, entrei ali. Dos quatro, três estavam comigo:  Yair, de 8 anos, Liora, de 6, e Omri, de 2. Minha filha Ariel, de 4 anos, havia ido dormir na casa de meus pais, que moram muito perto de nós. Apesar do telefone celular e a internet praticamente não funcionarem, às 10h da manhã entrou uma mensagem de meus pais, dizendo que nos amavam, mas que a casa deles havia sido invadida. [Os quartos de segurança possuem janelas e portas de metal maciço, e paredes e teto de concreto armado, prejudicando os sinais de internet e telefone]. Eu lembrei que temos um telefone fixo guardado em um armário no quarto de segurança, seguindo a orientação do Exército para quem vive em comunidades na fronteira com Gaza. Conectei-o e liguei para meus pais, que responderam murmurando que não podiam falar, pois havia terroristas na casa. Como diretora comunitária, faço parte de diferentes grupos de WhatsApp, entre eles o dos moradores do kibbutz, o dos gestores de comunidades vizinhas e o das equipes de segurança. A partir das 7 da manhã, quando o telefone conseguia captar algum sinal, centenas de mensagens entravam simultaneamente. Todas as notícias eram desesperadoras. Nessa hora, consegui ligar para o meu marido e implorei que não tentasse voltar para casa, como ele geralmente faz quando há alerta de mísseis. Lembro de ter dito para ele que, “se você nos ama, não volte”. Pedi que fosse para Rehovot, onde vivem os pais dele.

Quando os terroristas chegaram ao Ein Hashloshá?

Às 7h07, comecei a ouvir tiros de rifles Kalashnikov e gritos em árabe, além de pedidos de socorro em hebraico. Eu não tenho fechaduras nas portas ou na janela do quarto de segurança – ele deveria servir apenas para ataques de mísseis, não para invasão de terroristas. Depois, tudo ficou silencioso, até às 8h30. Os terroristas chegavam em ondas. Nesse momento, meu filho mais novo gritou: o exército chegou! Mas eu ouvia gritos em árabe e fiz sinal para ele ficar em silêncio. Em voz baixa, eu disse: “Não é o nosso Exército, são os terroristas”. Ele nunca havia ouvido esse termo antes e, assim, me perguntou o que são terroristas. “São pessoas ruins que chegaram de Gaza”, expliquei. Ele respondeu que isso era impossível, uma vez que eu sempre repetia que eles não tinham como chegar até aqui. Nessa hora, toda a confiança e segurança que construímos para nossos filhos foi por água abaixo. Foi uma ruptura muito forte. Imediatamente eles entenderam o perigo e ficaram muito assustados, pois entenderam que corríamos perigo de morte. Combinei com eles uma estratégia: no momento em que eu gritasse “agora”, meu filho mais velho pegaria o mais novo em seus braços e correria, junto com minha filha. Ele não concordou. Então combinamos um esconderijo dentro do quarto e disse a eles que, caso algo acontecesse comigo, eles deveriam entrar ali e só sair quando ouvissem alguém os chamando pelo nome. Tinha certeza de que eu iria morrer e queria achar uma forma de eles não testemunharem essa cena. Segurei a maçaneta da porta por mais de um dia inteiro entendendo que precisaria me sacrificar para tentar salvá-los.

Shiri em frente a uma das casas incineradas. Nela, uma das moradoras do kibbutz foi morta
Foto: Miriam Sanger
Shiri em frente a uma das casas incineradas. Nela, uma das moradoras do kibbutz foi morta


A comunidade conseguiu reagir de alguma forma?

Apesar de estarmos a apenas 2,5 quilômetros de Khan Younis [uma das cidades-base do Hamas], tínhamos apenas 4 armas disponíveis em todo o kibbutz. Há cerca de 2 anos, o Exército de Israel ordenou a retirada de todas as armas das comunidades do sul de Israel afirmando que houveram muitos casos de roubos por beduínos e que essa era uma medida para nossa própria segurança. Ou seja, estávamos desarmados.

Como seus filhos enfrentaram a situação?

Meus filhos, e todas as crianças das comunidades do sul, sabem que não há paz com nossos vizinhos. Conhecem bem os procedimentos em caso de sirenes antiaéreas. Mas, com a invasão, a confiança deles em nós foi quebrada. Fala-se pouco disso, mas esta é a primeira “camada de segurança” entre muitas, que começa na família, depois se estende à comunidade, à Polícia, ao Exército e, finalmente, ao país. Teremos muito trabalho para reconstruir todas elas. Nossas crianças crescem com um protocolo de resiliência. Conhecem todos os termos e mantras importantes para nossa sobrevivência nessa vizinhança. Os adultos lhes dizem o tempo inteiro que nosso Exército é forte, temos cercas e um país inteiro que nos protege. Naquele instante, a confiança desmoronou como um castelo de cartas. 

Conte sobre as 26 horas em que permaneceram dentro do quarto de segurança, sem contato com o mundo externo.

Todo o tempo ouvimos terroristas do lado de fora. Não tínhamos acesso ao banheiro – achei um saco plástico no armário e assim nos viramos. Também tínhamos fome e sede. Fazia calor e estávamos com tudo fechado, a luz desligada, assim como o ar condicionado. Meu filho Omri, de 2 anos, é asmático, e o fato de estarmos fechados dentro do quarto, sem ar fresco, não ajudou. Enquanto eu o abanava com um pedaço de papel, pedi que todos se lembrassem da bênção noturna que sempre faço com eles, e depois a que o pai faz. Também conversamos, aos murmúrios, sobre o que cada um faria para melhorar o mundo depois que saísse de lá. Tentei mandar os pensamentos deles para um outro lugar. Ensinamos meu filho mais velho a, em situações de perigo, sair pela janela segurando um dos irmão e chamar ajuda dos vizinhos. Implorei para ele não fazer isso dessa vez. Nesse meio tempo, mandei muitas mensagens de despedida, inclusive para meu marido. Quase 12 horas depois, às 18h15, ouvimos muitas vozes e movimentação do lado de fora. Também ouvimos o som ensurdecedor dos helicópteros de combate do Exército, que davam cobertura aos soldados. Sem comunicação com o mundo, eu não sabia o que pensar. Achei que todos à nossa volta tinham morrido. Mas, daí, ouvimos soldados e também a equipe de segurança do kibbutz chamando por nossos nomes. Vasculharam rapidamente todos os cantos da casa e saíram para continuar a ronda. Pedi que eles ficassem conosco, mas me disseram: “Vocês são a quarta casa que estamos checando. Precisamos continuar pois ainda há terroristas no kibbutz”. Meus filhos conseguiram dormir abraçados por algumas horas. Uma psicóloga depois me explicou que esse é um mecanismo de defesa.

Casa atacada em Ein Hashloshá
Arquivo pessoal
Casa atacada em Ein Hashloshá


Quando seu marido conseguiu chegar até vocês?

Às 8h30 da manhã do dia 8, ouvi a voz de Elad nos chamando. Ele não sabia se havíamos sobrevivido. Ele ficou o tempo inteiro na casa dos pais e, às 10 da manhã no dia anterior, ouviu meu pai no canal 2 da TV, implorando socorro. [Uma vez que o Exército e a Polícia custavam a chegar, por razões que ainda estão sendo investigadas, muitos moradores ligaram para canais de TV e rádio na esperança de serem resgatados.] Elad pediu uma farda emprestada de um vizinho e começou a viajar para cá. Perto daqui, foi parado pelo Exército. Ajoelhou-se no chão e implorou que o ajudassem a chegar à nossa casa – e eles os escoltaram até aqui. No caminho, Elad passou na frente da área do Festival Nova e não acreditou no que viu: centenas de carros incendiados e corpos pela estrada. O Exército ainda não tinha condições de coordenar nossa evacuação do kibbutz. Somente às 17h30 do dia 8 o fizeram. Foi um momento muito difícil, pois nos deram 5 minutos para sair. Na estrada, vi árvores pegando fogo, carros, pessoas. Era a própria visão do apocalipse. Meu marido, já conhecendo as cenas que encontraríamos pelo caminho, pediu que meus filhos mantivessem a cabeça abaixada. Fomos levados para Eilat [cidade no extremo sul do país, na fronteira com o Egito]. Ficamos lá por seis meses e, depois, fomos transferidos para a cidade de Netivot. A expectativa, no momento, é que possamos voltar para o kibbutz por volta de junho de 2025.

E sua família e amigos?

Meu irmão, que também mora ao nosso lado, viu quando os terroristas entraram na casa dos meus pais. Ele acompanhou como, logo em seguida, alguém os chamou e eles começaram a correr na direção das cercas do kibbutz, provavelmente para reforçar algum ataque. Uma de minhas amigas conseguiu ligar várias vezes para a Polícia – o tempo inteiro diziam que as forças estavam a caminho. Até que, na última ligação, ela foi informada que os policiais haviam sido mortos pelos terroristas a caminho daqui. Nas mensagens, o que mais as pessoas perguntavam era “onde está o Exército”.

Shiri em frente a uma das casas incineradas
Foto: Miriam Sanger
Shiri em frente a uma das casas incineradas


O que você sente em relação ao Exército de Israel depois do que passou?

Confesso que, na primeira semana, sempre que via um soldado à minha frente eu sentia uma tremenda raiva. Onde eles estavam quando precisamos deles? O mesmo aconteceu uma semana depois quando, ao pararmos em um posto de gasolina na estrada, vi muitos soldados conversando e tomando café. Eu só pensava em ir até eles para gritar minha raiva. Mas agora, um ano depois, faço um esforço para voltar a acreditar no Exército. Não tenho outra opção. [Mais de 300 soldados israelenses perderam suas vidas no dia 7 e 8 de outubro.]

Você sente que a comunidade está conseguindo se recuperar?

Praticamente todos nós estamos passando por tratamento psicológico, tanto individual quanto em grupo. Ainda teremos outra fase pela frente, quando começarmos a nos preparar para voltar. Vamos precisar de muito apoio, como indivíduos e como comunidade, para conseguir fazer isso. Vivemos, hoje, em um microcosmos de trauma. 

Eles pretendem voltar?

Ainda não perguntei. Ainda estamos longe desse estágio. Mas sei que os jovens dizem que sim, querem voltar. Eles serão os novos pioneiros de Israel.


** Miriam Sanger é jornalista, iniciou sua carreira na Folha de S.Paulo e vive em Israel desde 2012. É autora e editora de livros, além de tradutora e intérprete. Mostrar Israel como ele é – plural, democrático, idiossincrático e inspirador – é seu desafio desde 2012, quando adotou o país como seu.

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