O Brasil protagonizou a celebração, no mês de julho, do acordo de associação entre o bloco que compõe com Bolívia, Chile, Peru, Colômbia, Equador, Guiana e Suriname, o Mercosul, e a União Europeia ; para todos os fins, um acordo de livre comércio. Poucos dias se passaram até que os EUA afirmassem que o fariam, que celebrariam também um acordo de livre-comércio, mas agora apenas conosco; um acordo que o Ministro da Economia, Paulo Guedes, afirma já negociar. Não bastasse esse desejo de baixar entraves e salvaguardas, o Presidente Trump designou o Brasil como aliado preferencial dos EUA extra-OTAN , ou seja, alçou o país à condição de aliado estratégico militar dos EUA.
O provérbio português afirma que “quando a esmola é muita o santo desconfia” e me leva a perguntar se, nessa festa, seremos convivas ou serviçais. Fomos convidados para o regabofe ou para servir e arrumar a bagunça?
A OTAN é a organização criada 1948, pelo artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte, sob uma espécie de declaração de propósito de mosqueteiros, para, nas palavras do seu primeiro secretário-geral, o general britânico Hastings Ismay, “manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães embaixo”. É o signo de uma oposição, aparentemente renovada, entre Rússia e EUA, ainda que desse mundo de fumaça e espelhos pouco se possa ter certeza.
Os acordos e tratados internacionais nem sempre são, portanto, o que parecem ser, ou pior, o que expressamente dizem ser. Cabe à diplomacia de cada país zelar por seu melhor interesse, porque do contrato às vezes não brota justiça.
Os melhores e mais preparados negociadores triunfam enquanto os descuidados e incompetentes amargam o cumprimento de deveres que, com o tempo, mostram-se inconvenientes, senão desastrosos. Nós sempre tivemos um corpo diplomático de primeira grandeza, liderado por oradores impecáveis, intelectuais e homens públicos refinados; gente como José Bonifácio de Andrada e Silva, Quintino Bocaiuva, José Maria da Silva Paranhos Jr. (o Barão de Rio Branco), Osvaldo Aranha, Vicente Rao, Horácio Lafer, Afonso Arinos de Melo Franco, Evandro Lins e Silva, Celso Lafer e Celso Amorim. Hoje temos Ernesto Araújo.
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O peso da indústria de transformação brasileira no PIB era de 33%, hoje é de 16%. O superávit do comércio exterior, nesse segmento, reverteu-se em déficit de 65 bilhões de dólares. O Brasil tem a terceira maior desindustrialização entre 30 países, desde 1970, com o que a participação de todo o setor industrial no PIB caiu de 21,4% para 12,6% em quase 50 anos.
O projeto getulista de industrialização, forjado a sangue nos embates da Revolução Constitucionalista de 1932 (ou Guerra Paulista, como prefiro), foi paulatinamente desmantelado, para que hoje tenhamos um arremedo de indústria nacional, superada em importância por uma economia agrário-extrativista, centrada na exportação de matéria-prima.
Ainda assim, o Brasil é o país mais industrializado do Mercosul, seguido de Argentina e Chile.
O que significa, então, um acordo de livre comércio entre, de um lado, países desindustrializados e, de outro, países altamente industrializados? Significa, em suma, que vamos importar manufaturados de alto valor agregado e exportar commodities com gradativa degravação tarifária pelos próximos 10 anos (i.e., diminuição de impostos recíprocos). Que vamos aumentar a nossa dependência do agronegócio e dos setores extrativistas, a exemplo da mineração, e impor uma brutal competição à nossa combalida indústria. Que vamos nos submeter a uma determinação internacional de preços, tanto dos manufaturados que compramos, quanto da matéria-prima que vendemos, precisamente porque o preço das commodities agrícolas e minerais é determinado pelos mercados externos.
Não à toa, o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, um objetivo por anos da diplomacia brasileira, foi celebrado agora, no ápice da desindustrialização brasileira: a nossa indústria já não mete mais nenhum medo na deles. Não por acaso, também, a diplomacia norteamericana acenou para um acordo de livre comercio conosco, já advertindo que escorregamos em cascas de banana na negociação com os europeus.
A União Europeia é o maior importador agrícola do mundo e o Brasil o segundo maior fornecedor de produtos agrícolas ao mercado europeu. Nós só perdemos para quem? Certo, isso mesmo, para os EUA. E, por isso, é natural que os EUA não queiram que vendamos tanto quanto eles para os europeus.
Estão todos, EUA e União Europeia, bastante cientes de seus interesses e, em especial, da oposição de interesses. E nós? Nós sabemos o que queremos? Sabemos qual a nossa vocação econômica? Qual o destino do capitalismo nacional?
A aposta em uma economia agrário-mineral-exportadora é uma volta no tempo, sob o agravante de que agora esses setores econômicos se mecanizaram, para dispensar a massa de trabalhadores desqualificados que empregavam no começo do século XX. Pior ainda, uma aposta que novamente nos submete à oscilação de preços das commodities, sempre sujeita à especulação e à imprevisão de fatores macroeconômicos.
O pacote de bondades das potências hegemônicas é arrematado por um convite de aliança militar com os EUA . Isso evidentemente não significa que teremos bomba atômica. Haverá alguma reciprocidade, mas não é para tanto. Alguns caças de 4ª geração em troca de bases militares, de preferência na Amazônia.
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Imaginei que o governo de Jair Bolsonaro exibisse forte matiz nacionalista, sobretudo pela intensa participação (que já foi mais entusiasmada) das Forças Armadas. Arriscaram, representadas por alguns de seus mais distintos membros, a condição de instituição perene de Estado, um verdadeiro estamento, para tentar a sorte na política partidária.
Eu estava evidentemente enganado.
Estamos brincando de passa anel com os amigos errados. Arriscamos perder os dedos.
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