Jair Bolsonaro é o principal sabotador de seu governo. O Presidente aperta o botão ejetor sempre que pode, afronta a Constituição e belisca a desgraça. Do jeito que vai, cumprida a missão que lhe atribuiu a elite conservadora do país (e é bom que cumpra logo, porque a sua base eleitoral se erode a cada dia), há grandes chances de que vá para casa e de que entre para a história como um fisco sem precedentes.
A entrevista coletiva com jornalistas estrangeiros começaria em poucos minutos , em meio ao café da manhã da última sexta-feira. Um bolo de fubá para abrir os trabalhos. O Presidente Bolsonaro se sentou. Todo ouvidos, o Ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, preparava-se, indefectível, para tomar assento ao seu lado. O supremo mandatário, então, do nada, disparou: “Daqueles governadores de ‘ paraíba ’, o pior é o do Maranhão. Tem que ter nada com esse cara.”
É de perder o fôlego. Uma afirmação estrepitosa, à qual o Presidente não ofereceu nem mesmo os pudores de um cochicho.
Bolsonaro mostrou-se incapaz de distinguir (ao que parece em razão de desdenhosa simplificação) os Estados que compõem o Nordeste brasileiro. Sim, a região de valentes e valorosos brasileiras e brasileiros, assolada há séculos pela seca, pelo descaso, por oligarquias odiosas e pela corrupção, que lhe deu milhões de votos no segundo turno das eleições. Sim, parte importantíssima da comunidade administrada pelo Presidente da República, à qual esse Presidente se referiu como “Paraíba”.
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A gafe retumbante mereceria, desde logo, um contrito pedido de desculpas, sob o risco de colecionar quase 40 milhões de desafetos, como advertiu Alcione, a mais célebre e amada ludovicense do Brasil. Não há um só político, senão sob surto suicida, que se dê o luxo de afrontar tantos votantes assim. As desculpas, contudo, não vieram.
Depois de vilipendiar um monte de gente, o Presidente seguiu para orientar o seu ajudante de ordens.
A Casa Civil é uma pasta ministerial que compõe o Poder Executivo. O Ministro da Casa Civil é, em tese, de todos os ministros, o mais próximo do chefe da nação, porque o seu trabalho é gerenciar e integrar, sob a direção do Presidente, todas as funções do Executivo.
Jair Bolsonaro, então, informou o seu “primeiro-homem”, que Flávio Dino, governador do Maranhão, cuja aprovação atualmente monta quase 60%, segundo pesquisa do Instituto Exata, é o pior dentre os governadores dos Estados nordestinos (“Estados de paraíba” foi o termo exato).
Não se sabe as razões pelas quais o Presidente considera seja Dino o pior deles. E isso, em princípio, tem menor importância. O que se deve reter é o evidente: Bolsonaro não gosta de Dino.
O que é grave é o comando que se seguiu, quando Bolsonaro disse a Onyx que “tem que ter nada com esse cara”.
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Esse comando é uma clara ordem para que o Executivo, na relação com o governador do Maranhão, que representa o Estado e o Povo do Maranhão, com eles (o governador e o seu Povo) não se relacione (como se depreende do núcleo da ordem: “tem que ter nada”).
Tudo leva a crer que é mais do que isso, que é uma ordem para criar entraves, para discriminar, para obstaculizar. Uma ordem do Presidente para que desapareça toda a boa vontade. E, para os fins da lei, da lei que essa ordem afronta, nem é mesmo necessário que Lorenzoni tenha levado o seu chefe a sério.
O inciso III, do artigo 19 da Constituição da República proíbe a União (assim como os Estados e os Municípios) de “criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”.
E é sob essa proibição concreta, para proteger o cidadão da pata pesada do Estado, que o artigo 85, da mesma Constituição, tipifica como crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal, em especial, no seu inciso II, contra os “poderes constitucionais das unidades da Federação”.
O Presidente não pode, sem cometer crime de responsabilidade, discriminar cidadãos de um ou de mais Estados da Federação, em detrimento de outros, tampouco pode fazê-lo, ainda que indiretamente, porque é oponente, desgosta ou tem medo do líder do Executivo de um desses Estados da Federação. Essa é uma garantia constitucional essencial à unidade federativa. O Presidente não pode usar os poderes que circunstancial e temporariamente o Povo lhe atribuiu para perseguir inimigos, em especial governadores de Estado, porque, ao fazê-lo, prejudicará todo o Povo daquele Estado e, ao fim, a unidade do país.
O que acontece se o Presidente violar essa regra?
Bom, se o fizer, afrontará a Lei 1079, de 10 de abril de 1950, a Lei do Impeachment. Uma velha lei, infelizmente muito em voga. Afrontará, em particular, o seu artigo 6º, inciso 2, que caracteriza como crime de responsabilidade contra os poderes constitucionais dos Estados “usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para [...] coagí-lo no modo de exercer o seu mandato [...]” (vejam que basta a ameaça, ou seja, a forma tentada). A pena para esse crime, como todos nós estamos cansados de saber, é a deposição.
Não digo que Bolsonaro o fez, deixo essa conclusão para o leitor.
O que me incomoda, contudo, é que o Presidente não se importe em criar a dúvida. Nós já tivemos muitos Presidentes alvejados por essa lei, muitos mais do que seria saudável para uma jovem democracia. Não desejo mal a este governo, porque fazê-lo seria desejar o mal do meu país, algo de que não sou capaz. Não serei, contudo, condescendente com seus desacertos.
Penso que o Presidente deveria ouvir os seus críticos, aqueles que, com críticas pertinentes, zelam mais do que os simpatizantes e os tapinhas nas costas, por sua permanência no poder.
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