UM OLHAR SOBRE O RIO | A PEC kamikaze e o voo da galinha
Arte: Kiko
UM OLHAR SOBRE O RIO | A PEC kamikaze e o voo da galinha

Ficou para a próxima terça-feira, dia 12 de julho, a votação da PEC nº 15, a chamada PEC Kamikaze, que dará o tom do que acontecerá no país nos próximos anos. Se ela for rejeitada — o que parece improvável a essa altura —, a recuperação da economia será difícil e exigirá esforços e sacrifícios de toda a população. Se, por outro lado, ela for aprovada — como tudo indica que será —, a recuperação será praticamente impossível e a bondade que os senhores deputados estão fingindo realizar neste ano eleitoral cobrará um preço elevadíssimo justamente das camadas mais vulneráveis da população.

Para início de conversa, a medida é ilegal — uma vez que a lei impede a concessão de benefícios como esses em ano eleitoral. Porém, assim como os senadores fizeram dias atrás, agora são os deputados que usam a grave crise social desencadeada pela fragilidade econômica do país como desculpa para baixar um pacote que custará R$ 41,2 bilhões ao contribuinte brasileiro. Trata-se, evidentemente, de um tema delicado, que deve ser tratado com cuidado para evitar mal entendidos.

Mais de uma vez, ao longo dos últimos dois anos, este espaço manifestou apoio às medidas emergenciais adotadas pelo governo para amenizar as consequências da paralisia econômica provocada pela pandemia da Covid-19. Tais medidas eram fundamentais para salvar a vida da população mais vulnerável que, impedida de lutar pelo próprio sustento pelas medidas de restrição necessárias no combate ao vírus, de repente se viu sem possibilidade de por comida nos pratos dos filhos.

A providência do Auxílio Emergencial, da forma como foi feita em 2020, foi elogiável e suas consequências, positivas. Além de cumprir o papel a que se destinava — ou seja, impedir que pessoas morressem de fome —, o dinheiro extra movimentou o comércio, ativou a cadeia de suprimentos e injetou uma dose de ânimo numa economia com os sinais vitais comprometidos.

O problema é que a concessão de benefícios sem ter recursos para bancá-los é uma droga perigosa. Usada em doses exageradas pode viciar o organismo. O certo teria sido que, junto com ela, viessem medidas estruturantes, que fossem capazes de reduzir os gastos correntes e de gerar impactos de longo prazo sobre a economia. Dessa maneira, talvez o Auxílio Emergencial pudesse ter sido a mola propulsora de um círculo virtuoso capaz de colocar o país num processo mais acelerado de recuperação da economia. Infelizmente, não foi o que se viu.

PASSADO SOMBRIO

O problema é que, embevecidos pelo efeito positivo da medida, os parlamentares parecem ter se esquecido do caráter emergencial e transitório do auxílio — e que seu prolongamento tornaria ainda mais profunda a crise fiscal que o país atravessa. Sem pretender dar lições a quem tem a obrigação de conhecer o óbvio, os políticos que idealizaram e aprovaram as medidas contidas na PEC Kamikaze deveriam saber que a consequência mais imediata de uma crise fiscal — em que o dinheiro que entra no caixa do governo é insuficiente para cumprir tudo o que sai na forma de gastos públicos exagerados — é conhecida e tem nome: inflação. Seus efeitos fazem parte do que existe de mais sombrio no passado recente da economia brasileira.

A inflação que sentimos agora no nosso bolso e que deverá, pelo segundo ano consecutivo, levar ao rompimento da meta estabelecida pelo Banco Central para a variação de preços no país pode até parecer pequena diante dos índices indecentes e imorais que o país registrava antes do Plano Real, em 1994. Naquela época, a taxa de inflação costumava ficar acima de 1000% ao ano e isso não parecia assustar.

Diante os números daquela época, os 10,06% do IPCA medido pelo IBGE no ano passado podem parecer uma ninharia. Este ano, deve ficar um pouco abaixo disso devido à redução dos impostos estaduais sobre os combustíveis. Mesmo assim, deverá estourar a meta pelo segundo ano consecutivo. Isso é preocupante — ainda mais num país que ainda guarda na memória o efeito inercial da inflação numa economia indexada como é a brasileira.

Numa situação como essa, os preços são reajustados apenas porque os agentes econômicos acham que eles subirão. Quem sofre com a corrosão dos salários diante dos preços, claro, é a população mais carente — que, por não contar com mecanismos sofisticados para se proteger da taxa elevada, compra cada vez menos comida com o pouco que recebe.

MOTIVAÇÃO ELEITORAL

Todo mundo sabe que, por mais que os parlamentares aleguem estar preocupados com a situação da população, eles estão mais preocupados com os benefícios eleitorais que a aprovação da PEC pode lhes render. Uma lenda conveniente para os políticos populistas da direita e da esquerda (poucos não merecem esse rótulo, como se viu até aqui na tramitação da PEC Kamikaze) diz que os benefícios sociais concedidos com dinheiro pública que não existe são a tábua de salvação para os mandatos eleitorais. Quem se negar a pagá-los, ficará sem voto.

Isso pode até ser verdade, diante do quadro atual. O problema é que ninguém busca uma solução alternativa. Experimente, por exemplo, oferecer a qualquer pessoa saudável a possibilidade de escolher entre um emprego digno com carteira assinada e um auxílio emergencial concedido como se fosse uma esmola. Muito provavelmente, ela ficará com a primeira opção.

A despeito disso, os parlamentares brasileiros, em sua grande maioria, não conseguem esconder sua inclinação populista e tomam medidas que, mais cedo ou mais tarde, podem colocar em risco até mesmo os sinais tímidos de recuperação que a economia vinha apresentando nos últimos meses. O principal sinal dessa recuperação vinha sendo exatamente a recuperação do nível de emprego.

O VOO DA GALINHA

Os números são interessantes. A taxa de desemprego, que era de 14,7% no trimestre encerrado em maio de 2021, caiu para 9,8% no mesmo período deste ano, de acordo com o IBGE, responsável pelo acompanhamento. Ou seja, de 2021 para cá, a taxa recuou em 4,9 pontos percentuais e voltou ao nível de 2016. Não é nada, não é nada, isso significa que mais ou menos 4,6 milhões de brasileiros que estavam sem sustento em maio do ano passado, agora conseguem por sua própria conta levar comida para a família.

O número é vistoso — mas é preciso chamar atenção para os dados menos animadores que gravitam em torno desse fato positivo. Embora tenha sido o país do chamado G-20 que mais gerou empregos em 2021 e no início de 2022 — conforme um dado divulgado no início do mês passado —, o Brasil não viu a renda aumentar na mesma proporção. Pelo contrário. A massa salarial está atualmente 7,2% abaixo do ponto em que se encontrava no início de 2021. Ou seja: há mais pessoas trabalhando em troca de salários menores.

Um outro ponto a ser destacado em relação a isso é que, conforme os dados do CAGED — que registra a evolução das contratações e demissões de trabalhadores com carteira assinada — cerca de 80% dos trabalhadores formais do Brasil recebem seus salários de uma pequena ou de uma microempresa. Essas organizações, que comeram o pão que o diabo amassou no auge da crise causada pela pandemia, vinham recuperando o fôlego e voltando a contratar os trabalhadores que dispensaram meses atrás.

O problema é que as micro e pequenas empresas, como se sabe, têm menos capacidade financeira de resistir às adversidades do que as grandes organizações. Submetidas a uma política de juros cruel, que dificulta a obtenção de crédito e tornam mais complexa a gestão da companhia, elas são as primeiras a sucumbir diante dos desarranjos provocados por uma situação fiscal adversa. Ao tomar uma providência que ameaça justamente a estabilidade fiscal do país, os parlamentares estão assumindo conscientemente o risco de matar no nascedouro a recuperação que o país vinha ensaiando justamente com base na retomada da atividade da pequenas empresas.

É lógico que a situação é mais complexa do que está descrita aqui. A economia é um organismo vivo, alimentado por uma rede de vasos comunicantes que leva a decisão tomada hoje a se espalhar pelo sistema inteiro. Nesse caso, pode ser até que as medidas previstas na PEC Kamikaze tenham no primeiro momento força suficiente para ativar a economia e dar a ilusão de que tudo está melhorando.

O problema é que medidas populistas costumam ser responsáveis pelo efeito passageiro que os economistas dos anos 1990 batizaram de “o voo da galinha”. A ave doméstica, como se sabe, não tem capacidade de se manter no ar por muito tempo. Se voo é curto, baixo e conseguido à custa de um esforço desproporcional ao que as asas do animal conseguem suportar. Assim será com a PEC Kamikaze — que chega com o poder de gerar, hoje, benefícios que custarão caro e, antes do que se imagina, provocará estragos que afetarão a todos.

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