O que dizer diante de 500 mil mortes?
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O que dizer diante de 500 mil mortes?

Depois de quase um ano e meio, os sentimentos em relação ao coronavírus vão se confundido e o otimismo que surge com as boas notícias com frequência dá lugar ao pessimismo que acompanha as estatísticas em torno da pandemia.

Pelo lado do otimismo, foi alentador, na quinta-feira passada, ouvir do secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, o anúncio de que metade da população adulta do Rio de Janeiro já recebeu a primeira dose da vacina contra a covid-19 e que todas as pessoas com mais de 50 anos da cidade já estão imunizadas.

Mesmo com esses números alentadores, que mostram o Rio na dianteira do combate ao vírus, os motivos de preocupação não param de surgir. Em alguns pontos do país, como nos municípios paulistas de Araraquara e Bauru, os riscos de uma terceira onda já levaram as autoridades a impor novas medidas de restrição ao funcionamento do comércio e à circulação das pessoas. Como já ocorreu em outros momentos desde que essa tragédia teve início, o que acontece em um lugar logo se alastra pelo país inteiro. É preciso estar atento e nunca se descuidar das medidas protetivas.

Pior ainda é que, mesmo sem essa nova onda ter se iniciado, o número de vítimas não para de crescer — e o país chega à marca trágica dos 500 mil mortos. É triste, sobretudo para quem já perdeu parentes ou amigos queridos, saber que milhares e milhares dessas vidas poderiam ter sido poupadas caso não tivessem sido cometidos tantos erros na condução da pandemia. É isso que tem ficado claro a cada vez que se olha para a CPI que investiga as ações dos governos federais e de alguns estados em relação ao combate da pandemia.

PERSEGUIÇÃO POLÍTICA

Descontados os excessos verbais de alguns senadores, que parecem mais preocupados com a busca da notoriedade do que com o esclarecimento dos fatos, é impossível não admitir que, se não tivesse cometido tantos erros, o Brasil poderia estar vivendo uma situação bem mais confortável. Isso, evidentemente, na hipótese das providências corretas terem sido tomadas em tempo hábil. Foi o que ficou claro mais uma vez na quarta-feira passada, quando o ex-governador do Rio, Wilson Witzel, se apresentou diante da CPI.

As palavras ditas pelo ex-governador pouco ajudaram a elucidar os erros cometidos. Em cerca de três horas de depoimento, ele deu sua versão sobre a condução das políticas de Saúde no estado, que estiveram sob sua responsabilidade desde que a pandemia começou até seu afastamento do cargo em setembro do ano passado — no rastro do processo de impeachment que lhe custou o mandato.

Pouco esclarecedor no que se refere a detalhes, o depoimento teve o mérito de confirmar mais uma vez o que o país inteiro já sabia: quando o Brasil mais precisou, menos houve a sintonia política entre o governo federal e os governos estaduais. Cada um fez força para o lado que lhe interessava e quem pagou por isso, no final, foi a população e, mais do que todos os demais, as 500 mil pessoas que pagaram com a própria vida por erros cometidos na esfera federal, estadual ou municipal. A culpa é de todas as esferas do governo.

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Amparado por uma liminar expedida pelo ministro Kassio Nunes Marques, do STF, o ex-governador falou o que quis — e se retirou do plenário da CPI quando foi perguntado pelo senador Eduardo Girão (Podemos/CE) sobre as acusações sobre o superfaturamento na compra de respiradores durante sua gestão. Witzel, que se queixa de perseguição política, se propôs a dar mais esclarecimentos de sua relação com o governo federal em sessão fechada, longe das câmeras de TV.

LETAL E RESISTENTE

Esperar que um depoimento sigiloso prestado à CPI não se torne público antes mesmo de terminar é o mesmo que esperar, por exemplo, que o presidente Jair Bolsonaro passe a reconhecer, de uma hora para outra e com sinceridade, que ele estava errado ao defender a Hidroxicloroquina e o tal tratamento precoce da covid-19 com tanto entusiasmo. Tanto uma situação quanto a outra pode até acontecer, mas é improvável. Isso porque, para alguns integrantes da CPI, mais importante do que chegar à verdade parece ser apontar o dedo na direção do adversário.

Se de fato houver o interesse em esclarecer os fatos e dar esperanças à população, o melhor a fazer, antes que os 500 mil mortos se transformem em um milhão, é adotar uma política de Saúde em que não haja espaço para vaidades pessoais nem para picuinhas políticas. O certo é que, se a situação continuar como está e a campanha de imunização não acelerar ainda mais o passo, será cada vez mais difícil derrotar um inimigo tão letal e resistente como o coronavírus.

A está altura da pandemia, já está mais do que claro que não existem soluções milagrosas para a covid-19 e mesmo países que até ontem eram apresentados como modelos em matéria de medidas preventivas, de uma hora viram a doença recrudescer. É o que está acontecendo neste momento, para ficar apenas com dois exemplos, na Inglaterra e no Chile. Vistos como modelos de medidas de políticas públicas eficazes e de campanhas de vacinação bem sucedidas, os dois países se viram, de uma hora para outra, colhidos pela disseminação de novas e mais agressivas variantes do vírus.

Isso não significa, como já tem gente falando com base nesses exemplos, que as medidas de restrição e a vacinação em massa adotadas pelos dois países foram inúteis. A forma correta de encarar a situação é outra: se nem os países que adotaram medidas rigorosas de combate à pandemia estão a salvo, o que esperar daqueles em que nem o crescimento exagerado da quantidade de mortes parece alertar para a gravidade do problema?

Apenas para efeito de registro: pouco mais de dois meses atrás, este jornal publicou uma edição especial para protestar contra as 300 mil mortes registradas no primeiro ano da pandemia. A edição foi coordenada pelo jornalista Aloy Jupiara que, ao concluir o trabalho, já apresentava os sintomas iniciais da covid-19, que o mataria dias depois. Depois dele, Manoel Cavalcante Jr. e José Candico do Nascimento, colaboradores queridos e importantes do jornal foram derrotados por essa doença terrível. Agora, pouco mais de dois meses depois, o jornal é obrigado a tratar da marca de 500 mil mortes num momento em que se despede de mais um amigo.

Francisco Ivan, de 53 anos de idade e 20 de empresa, um dos mais antigos funcionários da gráfica do jornal, morreu depois de dez dias entubado numa UTI. Mais uma morte triste e lamentável de uma pessoa que tinha ainda muito o dar à família e aos amigos. Nosso papel, nessa hora, é trabalhar para que as vidas perdidas não se tornem meras estatística de uma tragédia que, se não poderia ter sido evitada, pelo menos poderia ter sido bem menor.

(Siga os comentários de Nuno Vasconcellos no twitter e no instagram: @nuno_vccls)

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