Nuno Vasconcellos
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Nuno Vasconcellos

Por mais de uma vez, esta coluna alertou para a inconveniência de se antecipar o debate em torno das eleições presidências do ano que vem . O motivo é óbvio: o país vive a maior crise sanitária da história e a economia está em frangalhos . Num cenário complexo como esse, 100% da atenção das autoridades deveria estar concentrada no combate à Covid-19 e na retomada do crescimento. Pelo menos, é isso que o bom senso aconselhava e a população esperava.

Todos os alertas dados aqui e em outros lugares foram inúteis: a campanha que não deveria acontecer neste momento já ganhou as ruas . Ela teve seu evento inaugural no passeio de motocicleta que o presidente Jair Bolsonaro fez no domingo passado. À frente de um grupo animado de apoiadores, ele não deixou dúvidas quanto ao que fará daqui por diante.

No percurso entre o Parque Olímpico na Barra da Tijuca e o Monumento aos Pracinhas, no Aterro do Flamengo, Bolsonaro seguiu um roteiro que parecia destinado a marcar suas diferenças em relação aos adversários. O presidente se misturou a uma multidão em que, como ele mesmo, muitos não usavam máscara. Abraçou adeptos, apertou dezenas de mãos e deixou claro que, naquilo que depender dele, a guerra pelo voto foi deflagrada um ano antes do que deveria. Pelo calendário eleitoral, a campanha deveria se iniciar em meados do ano que vem. Na prática, ela já começou.

Nesse aspecto, Bolsonaro é um fenômeno: quanto mais os adversários criticam seu desprezo pelas medidas de isolamento recomendadas durante a pandemia, mais ele se faz cercar por pessoas tão desprotegidas quando ele. O mais impressionante, em meio a isso tudo, é que, mesmo contrariando a atitude que se espera de um presidente, Bolsonaro conserva um grupo expressivo de apoiadores anônimos, que aprova seu estilo e parece disposto a acompanha-lo até o fim.

O presidente, claro, se apoia nisso para ir em frente. Tudo o que ele parece querer agora é marcar sua diferença em relação a um candidato que voltou à raia e já é apontado como o favorito na disputa presidencial. Um candidato que, com mais habilidade do que ele, também tem o poder de transformar em palanque qualquer lugar onde ponha os pés. Trata-se, é óbvio, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 

Culpa Dividida

Do ponto de vista de Bolsonaro, o resultado do evento inaugural da campanha não poderia ter sido melhor. Ao subir em sua Honda 750cc e liderar o passeio pela orla do Rio, ele tinha pelo menos três objetivos a alcançar e, a princípio, foi bem sucedido em todos. O primeiro era mostrar que, por mais que as críticas a ele tenham subido de tom, seus seguidores se mantêm fiéis — e estão dispostos a desafiar o perigo e ir à rua para apoiá-lo. Ao deixar isso claro, o presidente, a um só tempo, mostra aos adversários que não está sozinho e demonstra aos apoiadores que a opinião dos inimigos não o atinge.

O segundo objetivo era tentar evitar que as críticas que certamente seriam feitas ao evento acabassem por aumentar os obstáculos que já dificultam suas pretensões eleitorais. Para isso, o presidente lançou mão de um recurso extremo: chamou para estar a seu lado, como convidado de honra, seu ex-ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello.

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Seria ingênuo supor que Bolsonaro e Pazuello já não previssem o bombardeio que cairia sobre a presença do ex-ministro na manifestação de domingo, dias depois de ter prestado, em Brasília, um depoimento perante à CPI que investiga os erros do governo no combate ao coronavírus. Ao marcar presença e discursar no evento, o ex-ministro concordou em fazer o papel do “boi de piranha”. Atriu para si boa parte da reprovação que, se ele não estivesse lá, pesaria exclusivamente sobre o presidente. No final do dia, as principais críticas ao risco de contaminação provocada pela aglomeração de apoiadores sem máscaras foram dirigidas a Pazuello — e não dele. Simples assim.

O último objetivo talvez tenha sido o que justificou a própria realização do evento. A repercussão do passeio de Bolsonaro ofuscou o espaço de Lula no noticiário. Embora defendendo as medidas de isolamento e criticando as aglomerações o ex-presidente, tanto quanto Bolsonaro, também pôs seu bloco na avenida e foi recebido com aplausos. Por tudo o que representa, bastou que ele readquirisse os direitos políticos para provocar um rebuliço no cenário eleitoral.

O cargo cobiçado

Embora aja como se procurasse evitar a luz dos holofotes, Lula não tem medido esforços para se manter no centro das atenções. Desde que o STF anulou as sentenças que pesavam contra ele e determinou que os processos retornassem à primeira instância, o ex-presidente retornou ao centro do noticiário político. As articulações em torno do nome do possível vice em sua chapa passaram a ser acompanhadas com interesse: esse parece ser, no momento, o mais cobiçado entre todos os cargos que estarão em disputa no ano que vem.

Pelo que se percebe nas movimentações de Lula, tudo o que ele não quer é tomar uma decisão precipitada e, assim, ser acusado de estar fazendo um jogo parecido com o do adversário. O ex-presidente, por sinal, tem uma razão simples para não se expor tanto quanto Bolsonaro: ele não precisa disso. Na semana que antecedeu o passeio de motocicleta, o Instituto Datafolha havia divulgado os resultados da primeira sondagem eleitoral feita depois que Lula reconquistou o direito de disputar as eleições. E os resultados foram amplamente favoráveis a ele.

O ex-presidente aparece disparado na frente, com uma folga considerável. Nas sondagens para o primeiro turno, os números do Datafolha mostram Lula com 41% das intenções de voto e Bolsonaro com 23%. Num eventual segundo turno, os números indicam 55% para o petista e 32% para o presidente.

Existe, porém, um número citado de forma tão discreta no noticiário sobre a pesquisa que parece ter sido escondido de propósito. A mesma pesquisa que dá toda essa dianteira a Lula revela que cerca de metade dos eleitores ainda não tem convicção em relação a seu voto. Na declaração espontânea, 49% dos eleitores disseram que não sabem em quem votarão. O significado disso é claro: nada está definido, ainda.

É essa indefinição que torna visível o espaço para que um candidato forte venha a preencher esse vazio e entrar na disputa com eles. Com um detalhe: os dois que lideram a lista de preferência também lideram a lista de rejeição: Bolsonaro com 55% e Lula com 36%. Para muitos eleitores, a polarização que marcou o cenário eleitoral de 2018 já passou dos limites e, para o país superar a pandemia e voltar a andar para a frente precisa deixar esse comportamento para trás. Quem será esse candidato são outros quinhentos. O que interessa, por enquanto, é saber que existe espaço para ele. E muito.

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