Poucas vezes em seus dois anos e quatro meses de governo, o presidente Jair Bolsonaro foi tão Jair Bolsonaro quanto no episódio da semana passada — quando demitiu de uma só vez os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Ao tomar a decisão, inédita em períodos de normalidade democrática, ele conseguiu uma proeza que vinha tentando sem sucesso desde o início de seu mandato: trazer as Forças Armadas de volta para o centro da arena política.
Se a manobra prejudicará os planos de reeleição de Bolsonaro ou se lhe trará algum benefício, é um mistério a ser esclarecido nos próximos capítulos da novela. O mais provável, no entanto, é que, na melhor das hipóteses, não haverá qualquer mudança substancial no cenário e, no final, tudo ficará exatamente como estava antes dele tomar a decisão.
As Forças que foram trazidas para a cena logo recuarão e retornarão a seus afazeres constitucionais, de onde não deveriam ter sido tiradas. E o ato de Bolsonaro, como qualquer mudança rumorosa que produza resultados acanhados, nada mais será do que um tiro contra o próprio pé.
"Consciência democrática"
Tudo leva a crer que o presidente da República, conforme tem sido recorrente desde sua posse, não se preparou com a antecedência para uma medida de tanta gravidade. As Forças Armadas são, mesmo em momentos de paz, instituições fundamentais para o Estado e o comando da tropa não pode, por definição, ficar vago nem por um minuto. Tanto Bolsonaro, que foi oficial do Exército, quanto o general Walter Braga Neto, que na segunda-feira substituiu o general Fernando Azevedo e Silva no Ministério da Defesa, sabem disso melhor do que nós.
Se tivessem de antemão a intenção de trocar os chefes das Forças, os nomes dos substitutos teriam sido anunciados no ato da destituição dos três comandantes. Como isso não aconteceu, a impressão que ficou foi a de que os três abriram mão de seus postos. E o país ficou quase dois dias inteiros sem saber que o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira assumiria o comando do Exército no lugar de Edson Leal Pujol. Ou que o almirante Almir Garnier comandaria a Marinha no lugar de Ilques Batista Júnior e o brigadeiro Carlos Almeida Batista Júnior seria o substituto de Antônio Carlos Moretti Bermudez na Aeronáutica.
Pela trajetória profissional dos três novos comandantes, ninguém está autorizado a supor que eles estejam dispostos a por suas tropas nas ruas em defesa das posições do governo. Menos ainda para dar um golpe de Estado, como alguns andaram especulando nos últimos dias. Toda essa movimentação e a falta de habilidade do governo para lidar com ela deixou algumas as pessoas preocupadas e, como era de se esperar, gerou reações.
Você viu?
Na quinta feira passada, um grupo de políticos de peso divulgou um documento intitulado “Manifesto pela Consciência Democrática”. A nota relembra momentos da luta contra o regime militar e diz que “a Democracia Brasileira é ameaçada”. Os signatários da nota são o ex-governador Ciro Gomes, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, o presidente do Partido Novo, João Amoedo, o governador de São Paulo, João Doria, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e o empresário e apresentador de TV Luciano Huck. Eles têm em comum o fato de já terem tido seus nomes citados como candidatos à Presidência nas eleições de 2022.
Trata-se de uma atitude prudente e elogiável. Quando a democracia parece em risco, é melhor se antecipar e prevenir que a ameaça se materialize do que, depois, correr atrás do prejuízo para voltar à normalidade. De concreto, porém, o certo é que, até aqui, os excessos verbais que o presidente volta e meia comete ao defender seus pontos de vista não foram suficientes para causar danos à normalidade institucional. Em outras palavras, a distância entre a oratória de Bolsonaro e uma ameaça real de golpe é tão quilométrica quanto a que separa autoridade de um cabo da de um general de Exército. Quem apostar que os militares estão interessados em colocar o Legislativo e o Judiciário de joelhos perante o Executivo com certeza perderá.
“Um cabo e um soldado”
Assim como a pandemia do coronavírus jamais deveria ter sido trazida para o centro do debate político e utilizada como um pretexto para a antecipação da campanha eleitoral de 2022, algo extremo como o risco de um golpe de Estado jamais deveria ser reduzido a um argumento político de ocasião. Nada indica que exista no Brasil de 2021 qualquer hipótese de sucesso para um movimento parecido com o de 31 de março de 1964, que completou 57 anos na quarta-feira passada.
Alto lá! Antes que alguém me atribua a intenção de fechar os olhos para o perigo, é bom deixar claro que existem no Brasil malucos que sonham com a possibilidade de implantar uma ditadura. A questão, porém, é que o sucesso de qualquer movimento militar destinado a tomar o poder, como o que houve no Brasil em 1964, no Chile em 1973 ou em Portugal em 1975, independentemente dele ter sido inspirado por forças de direita ou de esquerda, não depende apenas da vontade de quem o desfere. Depende, mais do que isso, de uma conjunção de interesses econômicos e de condições sociais que, em hipótese alguma, estão presentes no Brasil de hoje.
Há um outro aspecto importante a ser observado. Se é verdade que existem no país pessoas que sonham com uma aventura golpista, também é verdade que os militares graduados não estão entre eles. Toda vez que alguém mais exaltado vem com essa conversa de golpe militar, aparece algum oficial sensato para lembrar que as Três Forças, como instituições de Estado, têm suas funções definidas pela Constituição e pretendem se manter fiéis a elas. Um dos que mais têm cumprido essa função é o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão.
Democracia é assunto sério e, assim, deve ser tratado como prioridade. O problema é que, no Brasil, chega a causar espanto a quantidade de pessoas que acham normal brincar com esse tema — como se a brincadeira, por si só, já não fosse capaz de produzir estragos. Os dois anos de quatro meses do governo Bolsonaro já foram suficientes para mostrar a seus apoiadores mais exaltados que é preciso mais do que “um cabo e um soldado” para enquadrar as instituições da República. É preciso, portanto, aceitar as regras do jogo e concentrar todas as fichas no que mais interessa ao país neste momento: o combate à pandemia e o retorno da atividade econômica.
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