A notícia da crise fez as pessoas correrem aos supermercados e acabarem com os estoques de álcool gel e papel higiênico. As esperanças sobre a cloroquina fez esgotar seus estoques, prejudicando quem dela precisa para outros fins que não o combate ao Covid-19 . O mesmo ocorreu com a Vitamina D. Enfim, é da natureza humana o famoso “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
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Claro que alguns povos já superaram isso, como os japoneses, que em meio às consequências do Tsunami e do acidente nuclear continuaram a consumir as quantidades de sempre, não prejudicando os demais cidadãos.
Infelizmente, o mesmo fenômeno de “salve-se quem puder” parece ocorrer no Judiciário. Em tempos de pandemia e de exaustão do sistema de saúde, surgem ações judiciais para garantir internação em UTIs . Infelizmente, uma das desilusões a serem citadas aqui é a de que uma ordem judicial não tem, por si só, o poder de criar uma vaga em hospital.
Se há apenas dez leitos, e eles estão ocupados, uma ordem judicial para pôr A ou B ali envolve tirar da UTI uma pessoa. Pior: se há uma fila (e a fila segue critérios médicos), uma ordem judicial faz uma pessoa ser ultrapassada por outra. E quem foi ultrapassado pode precisar mais, mas sem dispor de um advogado que o socorra.
Pode parecer um exemplo bizarro, mas é a realidade: em Cotia/SP, uma empresa que fabrica respiradores (a Magnamed ) foi invadida pelo vice-prefeito que, alegando ter decisão judicial, “confiscou” 35 respiradores. A empresa informou que os aparelhos ainda não haviam sido testados e por isso não poderiam ser usados. Imaginem agora se cada prefeito ingressar com uma ação e ganhar sua liminar. Avaliem ainda o risco de uma invasão assim impactar a capacidade de produção.
Não se aplica aqui a ideia de que “o direito não socorre a quem dorme”, pois para quem está na fila, sabendo que há uma série de critérios técnicos, não cabe nada senão esperar. Quem está errado é aquele que, angustiado, acha razoável peticionar para passar na frente na fila.
Entendemos o desespero de quem precisa internar um parente, mas as decisões judiciais precisam levar em conta o todo, o “big frame”, e não apenas um caso isolado. Em paralelo, sabemos que, em tempos de pandemia, os recursos já escassos se tornam ainda mais críticos. Daí, se o magistrado, bem-intencionado e querendo ajudar, interfere na fila e nos critérios médicos, pode produzir injustiça e desigualdade. Pior, isso estimulará a todos a, além de procurar o hospital, já em paralelo procurar também o Judiciário.
Em linguagem popular, quem sabe da quentura da panela é a colher que a mexe. É temerária qualquer intervenção exagerada do Judiciário, substituindo critérios puramente técnicos por uma mescla entre eles e a disposição, possibilidade e agilidade para obter acesso ao Judiciário.
Em tempos de crise, mais ainda. Pensamos que em situações de caos, até mesmo a obrigação de responder ofícios judiciais com questionamentos é um desperdício de energia e recursos necessários na linha de frente. Daí, não podermos permitir que as pessoas façam do direito de ação instrumento semelhante à corrida aos supermercados ou farmácias.
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O Judiciário tem muito poder e utilidade para resolver questões pontuais, mas deve ser muito cauteloso ao tratar de uma pandemia. Fora delas, ações civis públicas, de improbidade e todo o arsenal que existe, inclusive o combate à corrupção, pode servir para que sejam construídos mais hospitais, haver mais leitos de UTI e tudo o mais. No meio da crise, porém, a autocontenção é necessária.
Às vezes, o juiz tem a ilusão de que pode resolver tudo. É, de fato, bastante doloroso querer ajudar e não ter como. Soma-se a tudo a necessidade de diariamente voltar para casa se perguntando se você poderia ter salvado uma vida. Em alguns momentos, até por conforto pessoal, pode ser que um juiz diga “sim” quando deveria dizer “lamento, mas não”. Nessa hora, o juiz não está mais emocionalmente apto a julgar a causa.
Nesse passo, em um mundo onde a realidade indica recursos limitados, determinar a compra de um medicamento experimental nunca é uma decisão isolada: esses recursos deixarão de comprar outros tantos medicamentos para muitos, para milhares de pessoas. Nesse passo, recentemente o STF decidiu seguindo a reserva do possível.
A maior desilusão para nós, magistrados, é que não podemos fazer milagres. Pior: se tentarmos vestir um santo, despiremos outro. Há ainda outras desilusões a considerar: o advogado, o membro da Defensoria ou do Ministério Público que, desiludidos com a derrota eleitoral do candidato que representa sua ideologia, passam a reiteradamente questionar judicialmente medidas do Poder Executivo. Não é difícil apontar inconstitucionalidades em diversos atos, mesmo numa oração ou missa. Daí, haver operadores jurídicos que querem se substituir ao Poder Executivo através do uso do direito de ação.
O Presidente, Governador ou Prefeito começam a praticar atos compatíveis com sua plataforma de governo e sofrem verdadeiro assédio processual. Pior: às vezes tais operadores encontram magistrados que, desiludidos também, creem, sinceramente (e até de boa-fé) que podem “corrigir” os erros do governante. Porém, fazem isso não diante de algum absurdo ou teratologia, mas de meras políticas públicas distintas, que são do agrado do Executivo (e dos que o elegeram) mas do desagrado do operador jurídico (derrotado nas urnas, mas não na teimosia).
O problema é que a pessoa que tem legitimidade para decidir a política é aquela que se submeteu às urnas e dela saiu vitoriosa, mais ninguém. É um atentado à democracia se opor a que um candidato eleito possa realizar seu plano de governo. Obviamente, havendo claro abuso do mandatário, cabe o controle judicial, mas não é o que temos visto.
As ações se multiplicam contra toda e qualquer medida que os governantes adotam. Infelizmente vemos tempos em que os operadores jurídicos peticionam e o Judiciário, ao decidir, quer legislar e gerir. Esse grau de ativismo, de assédio processual, de intervencionismo e de desrespeito à independência e separação dos Poderes não é saudável. Em tempos de pandemia, deixar a gestão do caos diluída entre dez mil juízes, cada um querendo decidir, organizar, distribuir recursos e tudo o mais não vai dar certo.
No caos, é preciso liderança. Quem lidera é quem foi eleito. Se a decisão daquele que foi eleito desilude, paciência: ele é quem tem legitimidade. Não é possível submeter as autoridades públicas do Executivo ao martírio duplo de enfrentar o caos e também um tsunami de ordens judiciais até bem-intencionadas, mas que são prejudiciais à administração da crise.
Ou a decisão é para a empresa ou pessoa A ou B (e se perde a gestão do todo) ou é decisão sobre qual caminho seguir e um juiz, por melhor que seja, não pode querer que sua visão e interpretação pessoal da Constituição valham mais do que a decisão daqueles que foram eleitos.
Quando o juiz determina que dos 100 respiradores do estoque, 50 sigam para tal lugar, algum lugar vai ficar sem respirar. Como disse o Ministro Mandetta, “o juiz não pode ter visão local”. Mais que isso: DPU, MP e juízes não podem determinar política pública.
Resumindo, entre as desilusões a lidar, temos: a correria egoísta; a crença equivocada de que o poder do juiz é infinito, fazendo com que possamos muito mais atrapalhar do que ajudar; ver pessoas não eleitas não respeitarem a legitimidade das urnas.
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Espero que a consciência cívica da população cresça com esse episódio e que o Judiciário cumpra bem as nobres atribuições que lhe cabem, sem ceder à tentação de fazer o papel alheio.