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A fragmentação das relações e a banalização das emoções são o que de
pior poderia restar desta estranha divisão que domina o país. A hipótese de
separar pessoas tão próximas nunca esteve numa mesa, nem imaginária,
como sendo a opção real durante a convivência diária quase forçada no
decorrer do confinamento.

A realidade pode ser bizarra quando se constata que chega um momento
em que há escolhas e definições a serem tomadas. As relações que se
sustentavam com carinhos esparsos e sem profundidade, como que
automáticas, não resistem mais a esse momento. Todos estão esgotados.
Não que a tormenta tenha se dissipado, mas é preciso ter certa resolução e
altivez.

A crise sanitária e o isolamento, quase um enclausuramento, estão
cobrando agora uma outra conta: a relação entre as pessoas. A
insustentável dureza de ser. Acompanho, com carinho, relacionamentos em
franco desmoronamento e muitas tristezas. Certa obviedade no ar.
Conexões antigas que deveriam mesmo ser resetadas. A coragem que
brotou da mesmice diária e, de certa forma, foi libertária. Já era hora, quase
tarde.

Mas o que a crise não diz – já que só se ressalta a dor, que vira poesia e
samba – são os amores que se superam. Que se descobrem e se fortalecem.
Os detalhes que foram preservados, os mimos acalentados e os desejos
reciclados. Um certo companheirismo descoberto para o enfrentamento da
barbárie juntos.

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E o silêncio. A enorme cumplicidade no silêncio a dois. A solidão dividida
com calma e um envolvente amor. A descoberta da hora do toque e do
respeito à distância, ainda que só imaginada. O nada se materializando. A
desnecessidade de explicar. A cumplicidade na presença e na ausência.

A vida, enfim. Quando quiseram nos vencer pelo cansaço, isso de alguma
maneira nos uniu. E o desejo ocupando o seu espaço com a volúpia natural,
ora avassaladora, ora leve e profunda. Já era hora de deixar o amor fluir.

A resistência ao fascismo, de certa maneira, nos embruteceu. E, se nós
cedermos a isso, teremos perdido. A única forma de vencermos a barbárie é
assumindo o amor, revelando o respeito e nos deixando todos sermos bobos
e leves. Quem no meio do caos se permitiu ser feliz está apto a salvar o
mundo. Resta seguir tentando.

Sempre ouvindo Pessoa:

“O amor, quando se revela, não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
mas não lhe sabe falar.”


Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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