Aos 14 anos, João Pedro largou a escola para trabalhar como vendedor de rua. Ele vende doces para ajudar a mãe, que é solteira, tem mais três filhos, e é empregada doméstica. JP é negro e morador de uma favela onde o esgoto corre a céu aberto, a rua não tem asfalto e a violência e o tráfico de drogas são cotidianas. Sua irmã mais nova tem paralisia cerebral, não frequenta a creche, não tem acesso à reabilitação e recebe os cuidados da vizinha.
João e seus irmãos são parte de um triste e alarmante percentual onde 61% das crianças e dos adolescentes brasileiros são afetados pela pobreza em suas múltiplas dimensões. O número integra a recente pesquisa " Pobreza na Infância e na Adolescência", divulgada esta semana pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância, o UNICEF.
O estudo deflagra que a pobreza nesta faixa etária vai além da renda. Há uma somatória de privações de direitos a que meninas e meninos são submetidos diariamente em nosso país: educação, informação, proteção contra o trabalho infantil, moradia, água e saneamento.
De acordo com o UNICEF , 32 milhões de meninas e meninos vivem a pobreza da maneira mais nociva no Brasil, ou seja, em suas múltiplas dimensões. Desses, 6 milhões vivem em famílias financeiramente pobres, mas com direitos garantidos. Outros 12 milhões, além de viver na pobreza econômica, têm um ou mais direitos negados, estando em uma situação de privação múltipla. E há ainda 14 milhões de meninas e meninos que, embora não sejam monetariamente pobres, têm um ou mais direitos negados.
No conjunto de aspectos analisados, o saneamento é a privação que afeta o maior número de crianças e adolescentes (13,3 milhões), seguido por educação (8,8 milhões), água (7,6 milhões), informação (6,8 milhões), moradia (5,9 milhões) e trabalho infantil (2,5 milhões).
Aliás, a falta de saneamento básico, atendimento de saúde adequado, pouco acesso à informação e outros problemas decorrentes da pobreza acarretam também um maior percentual de deficiência na população. Estima-se que 90% dos casos de deficiência visual causadas por doenças como a catarata e o glaucoma, por exemplo, estejam concentrados em nações em desenvolvimento.
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A pobreza pode levar ao surgimento de problemas de saúde associados à deficiência, inclusive através de baixo peso ao nascimento, desnutrição, falta de água potável ou saneamento adequado, condições inseguras de trabalho e de vida, e lesões.
Sabemos que o transmissor do Zika Vírus, por exemplo, um dos causadores da microcefalia, é o mesmo da dengue, que já passou por várias epidemias em nosso país. O Estado brasileiro, no entanto, nunca tomou providências efetivas para erradicar o mosquito Aedes Aegypt. É neste mesmo cenário de desigualdade e abandono, que outras tantas crianças brasileiras são deixadas por suas famílias após o diagnóstico da microcefalia. Sem cuidados e terapias, a maioria não consegue falar, caminhar e ou se alimentar.
Cabe a cada representante público compreender as dimensões onde as crianças e os adolescentes brasileiros são mais afetados pela pobreza e investir em políticas públicas que assegurem seus direitos em todas as áreas. Mas a sociedade tem também papel fundamental para mudar essa realidade. Colocar essas crianças à margem da invisibilidade como se o problema fosse apenas do Estado é nocivo, é cruel, é perverso.
O que nós, como cidadãos brasileiros, fazemos para erradicar o trabalho infantil ou o racismo que a criança negra da periferia sofre? Ou o preconceito sofrido pela criança com deficiência que tem sua matrícula escolar negada? Infelizmente, ainda é muito comum a concepção cruel de que criança pobre tem que trabalhar, enquanto vislumbramos apenas o melhor aos nossos filhos.
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A criança do farol, que teve que largar a escola, também sente frio, fome, ela é assediada de várias formas. E isso é um grande problema que ela enfrenta diariamente - e sozinha. Repensar nossa forma de fazer política pública é urgente. Mas a nossa forma como olhamos para essa criança também.