Adelário Ronnau, referência em produção de gado leiteiro, mudou-se para o Assentamento Rio Juma, em Apuí, no Amazonas, no início da década de 80. “Eu sou de Santa Catarina, mas vim criança, não tenho nem lembrança de lá”, conta. O pecuarista mora em um lote de 86 hectares junto com a esposa, filhos e netos, que assim como outras 6010 famílias, fazem do assentamento o mais populoso do Brasil.
Setenta hectares da área total do lote de Adelário são utilizados para criação de gado, questão que contraria o Artigo 16º do Código Florestal Brasileiro, no que diz respeito à Reserva Legal de vegetação nativa - condição estabelecida desde 1965 para os donos de terras na Amazônia Legal . Até o início de 2014, a família de Adelário praticou desmate ilegal na propriedade e tinha baixo retorno com a criação extensiva de gado, assim como milhares de outras famílias na região.
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No entanto, um movimento de agricultores está indo na contramão da lógica do desmate e investindo em técnicas de manejo sustentável que aumentam a produtividade e o lucro. A realidade da família de Adelário, por exemplo, mudou quando passaram a se dedicar à pecuária leiteira num sistema silvipastoril , diminuindo a área de criação de gado e integrando árvores nativas da Amazônia .
“Agora eu dobrei a produção e tô vendendo o queijo, a nata, a manteiga, o iogurte e o leite pasteurizado para fora do município”, conta, enfatizando que as vendas em Apuí já não são suficientes para suprir a demanda de produção .
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Cerca de dez famílias, assim como a de Adelário, criam gado integrado com plantas nativas do bioma da Amazônia em Apuí. “A gente tem formas de trazer árvore para o sistema, que possam diminuir o impacto da pecuária e isso contribui para amenizar o aquecimento global e a pressão do desmatamento - porque esses produtores não vão precisar abrir novas áreas todo ano para expandir seu pasto ”, diz Ramom Morato, Agrônomo e Coordenador Geral do Programa de Produção Rural Sustentável do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia ( Idesam ) - ONG que atua com projetos ligados a sustentabilidade na Amazônia desde 2004.
O biólogo e pesquisador da Embrapa Informática Agropecuária , Alexandre Coutinho, explica que as migrações populacionais na década de 1970 para a região da Amazônia foram incentivadas por uma questão de soberania nacional através da ocupação do território, promovidas e incentivadas pelo governo militar. “A ocupação aconteceu até um passado relativamente recente de forma desordenada e não muito bem controlada. Isso fez com que a falta de vigilância e gestão promovessem impactos ambientais em toda a Amazônia ”, conta.
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Segundo o economista e autor do livro "Parce(le)iros da Amazônia : fundamentos institucionais de uma economia da floresta em pé", Pedro Frizo, várias diretrizes governamentais, em especial a partir do regime militar [final da década de 60], estimularam a ocupação maciça da Amazônia . Segundo Frizo, o Assentamento Rio Juma, em Apuí, ilustra ações governamentais que focaram na “ exploração dos recursos naturais e florestais, na produção agropecuária em larga escala e na colonização amazônica”.
Mais que estabelecer leis e normas para a ocupação de territórios na Amazônia , como a normativa que previa um desmatamento mínimo de 50% do lote para sua titulação definitiva, o governo da época baseava-se “em um discurso institucional focado em promover a Amazônia Central como a principal fronteira agropecuária da época”, conta o pesquisador.
Café Conilon 100% Sustentável
Outro projeto que tem ganhado bastante relevância e visibilidade no sul da Amazônia, fronteira com o estado de Rondônia, é o Café Agroflorestal Apuí. O primeiro café conilon sustentável e orgânico da Amazônia não utiliza agrotóxicos e produtos químicos na sua produção.
Cerca de 30 famílias participam do projeto que une as plantas de café com árvores nativas, proporcionando benefício ecológico e melhorando a qualidade do produto, que não fica tão exposto ao sol, como o convencional.
Além disso, o café teve uma valorização de 30% nas vendas por ser orgânico , o que melhorou a qualidade de vida dos agricultores . Marina Yasbek Reia, coordenadora do projeto, afirma que a renda do café representa em média 50% da renda familiar anual: “É bem significativa a renda do café para as famílias”, conclui.
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Ronaldo Carlos de Morais sempre trabalhou com agricultura familiar, mais focado na lavoura branca - termo que caracteriza as plantações de arroz, milho, feijão, café e cacau - e era acostumado a utilizar agrotóxicos para “limpar” a lavoura. “Achei uma diferença muito boa! Até o sabor do café é outro, bem mais gostoso. Futuramente eu quero manter tudo orgânico no sítio. Quero que a produção do cacau, e do guaraná seja orgânica também”, conta.
As práticas do manejo sustentável do café agroflorestal permitiram diminuir de 30% para 1,8% a perda de grãos por pragas no cafezal, e conquistaram mercado nos municípios de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, além do estado do Amazonas. Em 4 anos, os agricultores venderam pouco mais de 63 mil pacotes de 250g de café .
A melhor estratégia para frear problemas climáticos como as emissões de gás carbônico - elemento que contribui para o aquecimento da Terra - seria “reduzir ou eliminar” o desmatamento na Amazônia. Isso porque um hectare de floresta nativa estoca 500 toneladas CO2 no tronco, nos galhos e nas raízes, e quando ela é queimada, os gases vão para a atmosfera. A nível de comparação, isso significa 500 novos carros poluindo o Brasil no período de um ano.
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Como já existem muitas áreas degradadas , iniciativas de reflorestamento como a do pecuarista Adelário e do agricultor Ronaldo, funcionam como estratégia para estocar esses gases. Cada hectare de mata reflorestada tem o potencial de sequestrar 255 toneladas de CO2 presentes na atmosfera no período de 20 anos. Os 40 agricultores que participam o projeto contribuirão, em um período de 20 anos, com 7.650 toneladas de CO2 estocados.
A longo prazo, o município de Apuí, que tradicionalmente tem identidade marcada pela colonização de comunidades vindas do sul do Brasil, com uma forte tradição de produção agropecuária , poderá ser exemplo na produção agroflorestal e um laboratório vivo para o Brasil.
Apuí queima em chamas
No último mês, os focos de incêndio no bioma da Amazônia despertaram comoção mundial, principalmente depois que São Paulo viu o céu escurecer como consequência da fumaça das queimadas , vindas do Norte e da região central do Brasil, misturadas ao mau tempo.
De acordo com uma nota técnica do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), "os dez municípios amazônicos que mais registraram focos de incêndios foram também os que tiveram maiores taxas de desmatamento em 2019”:
“O levantamento que a gente tem é que grande parte do desmatamento , cerca de 90% praticado no sul da Amazônia é pra conversão de pasto para pecuária ”, conta Morato. Dados publicados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), demonstram correlação entre as queimadas com o uso das terras para pecuária, já que mais de 60% da área total desmatada na Amazônia foi destinada a essa atividade.
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A pecuária exerce grande relevância nas exportações brasileiras. Além de abastecer o mercado interno, representa cerca de 6% do PIB nacional. De acordo com dados do IBGE, a atividade ocupa hoje 220 milhões de hectares do território nacional, sendo 70 milhões na região Amazônica . Entretanto, a expansão da atividade é apontada como uma das principais razões para a intensificação do desmatamento ilegal.
“ Desmata-se uma área, e coloca-se o pasto e o boi - que exige baixa mão de obra. Esse sempre foi o modelo de desenvolvimento , o problema é que isso foi a grande custa do meio ambiente ”, diz Pedro Soares, gestor ambiental e gerente do Programa Mudanças Climáticas do Idesam .