
Uma descoberta arqueológica inédita pode mudar o que se sabe sobre a civilização Tiwanaku, uma das mais antigas e influentes dos Andes, que desapareceu misteriosamente há cerca de mil anos. Na última terça-feira (24), cientistas da Universidade Estadual da Pensilvânia(Penn State) e da Bolívia, revelaram ter localizado as ruínas de um templo até então desconhecido, no alto de uma colina a cerca de 200 quilômetros ao sul do sítio histórico de Tiahuanaco, no oeste boliviano.
A descoberta, publicada no periódico científico Antiquity, pode conferir novas perspectivas sobre o alcance territorial e a estrutura política e religiosa do povo Tiwanaku, que antecedeu os Incas. O templo, chamado de Palaspata, possui cerca de 125 metros de comprimento por 145 metros de largura — quase o tamanho de um quarteirão — e contém 15 recintos quadrangulares organizados ao redor de um pátio rebaixado. A disposição da construção sugere alinhamento com rituais do equinócio solar, o que reforça seu caráter cerimonial.
Segundo o antropólogo José Capriles, professor da Penn State e principal autor do estudo, essa região específica onde o templo foi localizado ocupava posição estratégica no auge de Tiwanaku. “O local conectava três rotas comerciais principais entre as terras altas ao norte, os vales áridos do oeste e os vales agrícolas de Cochabamba, ao leste”, explicou. Essa interconexão reforça a ideia de que o templo tinha função econômica e política, além de religiosa.

Um dos indícios mais marcantes do papel comercial do sítio é a presença de fragmentos das tradicionais xícaras keru, usadas para consumir chicha, a cerveja de milho típica da região. O detalhe é que o milho não era cultivado naquela altitude, o que comprova sua importação de outras regiões, reforçando o papel do templo como um polo de troca e convergência cultural. “A religião mediava as relações econômicas e políticas. A divindade era a linguagem comum entre diferentes grupos”, destacou Capriles.
A identificação da estrutura só foi possível graças ao uso de tecnologia de ponta. Os pesquisadores combinaram imagens de satélite com fotogrametria aérea, feita por drones, para criar um modelo tridimensional do terreno e identificar os alinhamentos de pedra que compõem o templo.
“Como as características são muito tênues, combinamos várias imagens de satélite”, destacou Capriles. “Também realizamos uma série de voos de UAV (veículo aéreo não tripulado) para obter imagens melhores. Por meio da fotogrametria, uma técnica que usa fotos para construir uma aproximação 3D, obtivemos uma representação mais detalhada da estrutura e de sua topografia", explicou.
Os pesquisadores trabalharam também com o Ministério da Cultura, Descolonização e Despatriarcalização da Bolívia para exportar amostras, que foram datadas no Laboratório de Datação por Radiocarbono do Instituto de Energia e Meio Ambiente da Penn State.
A descoberta surpreendeu até a própria comunidade local. “Os achados arqueológicos em Palaspata são significativos porque destacam um aspecto crucial do nosso patrimônio local que havia sido completamente ignorado”, afirmou Ventura Guaravo, prefeito de Caracollo, município boliviano onde o templo foi encontrado.
“Esta descoberta é vital para a nossa comunidade e acreditamos que sua documentação será inestimável para promover o turismo e divulgar a rica história da nossa região.”, disse Guarayo. O prefeito ainda garantiu que vai trabalhar em conjunto com os governos estadual e nacional para garantir a preservação do local.
A civilização Tiwanaku
Antes dos incas dominarem os altos planaltos da América do Sul, a região foi cenário de uma das civilizações mais sofisticadas do continente, a Tiwanaku. A organização social, tecnológica e urbana desse povo é considerada inovadora para os padrões da época e, por isso, muitos arqueólogos o configuram como a “cultura mãe” dos Andes.
Essa sociedade exerceu influência por vastas áreas onde hoje estão Peru, Chile, Argentina e Bolívia e, ainda hoje, segue envolta em mistérios. O centro político, espiritual e econômico dessa civilização estava localizado a cerca de 74 quilômetros de La Paz, às margens do lago Titicaca. A cidade de Tiwanaku se erguia a quase 4 mil metros de altitude e atingiu seu apogeu entre os anos 400 e 900 da era comum.
“Em seu auge, ostentava uma estrutura social altamente organizada, deixando para trás vestígios de monumentos arquitetônicos como pirâmides, templos com terraços e monólitos, a maioria dos quais distribuídos em sítios ao redor do Lago Titicaca. Embora saibamos que o controle e a influência de Tiwanaku se estendiam muito além, estudiosos debatem qual era o seu real controle sobre lugares distantes", completou o arqueólogo José Capriles.
O complexo arqueológico preservado na região é descrito pela Unesco como uma demonstração clara da originalidade e do poder simbólico de Tiwanaku, cujas características a distinguem de outras culturas pré-hispânicas do continente. Monumentos construídos com pedras gigantescas esculpidas com precisão milimétrica intrigam até hoje os especialistas, principalmente pelo fato de essa sociedade não conhecer a roda. A pirâmide de Akapana, por exemplo, é apontada como a maior e mais antiga estrutura do tipo construída antes da chegada dos colonizadores europeus à América do Sul — e teria cerca de 2.500 anos.
Tiwanaku foi desenhada para abrigar uma sociedade multiétnica e diversa, com bairros organizados para diferentes grupos populacionais e uma economia sustentada pelo comércio e pela agricultura. A cidade contava com um avançado sistema de drenagem subterrânea e canais que controlavam o fluxo da água da chuva — uma tecnologia que impressiona os arqueólogos até hoje. A produção agrícola era baseada em métodos surpreendentes para a época, como os sukakollos, campos elevados com irrigação eficiente, que permitiam a adaptação às variações climáticas extremas do altiplano.
Além disso, os tiwanakotas desenvolveram terraços artificiais que ampliavam a produtividade e mantinham a fertilidade do solo, promovendo o desenvolvimento sustentável da região. Inovações que, segundo a Unesco, seriam posteriormente absorvidas pelos incas e levadas até Cusco, considerado o coração do Império.
O controle político da civilização era exercido a partir de um modelo descentralizado. Tiwanaku estabeleceu colônias em territórios amplos — equivalentes ao atual estado da Califórnia —, onde instalava centros de produção, artesanato e intercâmbio. Ao invés de subjugar militarmente os povos locais, a estratégia era integrar diferentes regiões por meio do comércio e da religião, consolidando assim sua autoridade econômica e simbólica.
Apesar do tamanho e da sofisticação, Tiwanaku entrou em declínio por volta do ano 1000. O colapso não ocorreu de forma abrupta, tampouco foi provocado por uma catástrofe específica. As evidências indicam que o processo durou cerca de dois séculos e teria sido provocado por uma combinação de fatores — sendo o principal deles uma longa e severa seca que comprometeu a base agrícola da civilização.
“Sua sociedade entrou em colapso por volta de 1000 d.C. e estava em ruínas quando os incas conquistaram os Andes no século XV”, disse Capriles. “D.C.” refere-se à era comum do calendário atual.
Esse esvaziamento gradual não significou, necessariamente, o desaparecimento imediato da população, mas sim uma dispersão dos grupos humanos que habitavam a região. Muitos dos seus saberes e práticas foram assimilados por povos posteriores, incluindo os próprios incas, que passaram a ocupar o altiplano somente a partir do século XIII.
Durante muito tempo, inclusive, acreditou-se que Tiwanaku havia sido uma criação dos incas . Só nas décadas de 1960 e 1970, com o avanço das técnicas de datação por carbono e a descoberta de artefatos mais antigos, ficou claro que se tratava de uma civilização anterior — com uma identidade própria, independente, e que moldou culturalmente os Andes muito antes do Império Inca se consolidar.
Boa parte do legado tiwanakota foi comprometido ao longo dos séculos. As ruínas foram saqueadas, desmontadas e utilizadas como pedreira para construções modernas. Há registros históricos de que pedras do sítio arqueológico foram transportadas até La Paz, onde serviram como base para edifícios públicos. Apenas cerca de 10% da antiga cidade foi escavada — o que significa que a maior parte da sua história ainda está enterrada.
Embora a maioria das evidências arqueológicas da civilização Tiwanaku esteja concentrada ao redor do Lago Titicaca, o novo sítio reforça a tese de que sua influência ia muito além da área central. “Ainda há muito a ser descoberto, e muito pode estar escondido à vista de todos”, disse Capriles.
A civilização que por séculos dominou os Andes, ergueu templos monumentais e construiu uma rede de influência econômica e espiritual que atravessava fronteiras, desapareceu sem deixar respostas definitivas. O que restou foram enigmas, estruturas impressionantes e o compromisso dos arqueólogos de continuar escavando as pistas de uma sociedade que moldou a história da América do Sul — mas que ainda não revelou todos os seus segredos.
“Com mais conhecimento sobre o passado deste sítio arqueológico, temos uma visão de como as pessoas administravam a cooperação e como podemos ver evidências materiais de controle político e econômico”, completou Capriles.
A pesquisa foi financiada parcialmente pela Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos, com participação de estudiosos da Universidade de Granada, da Universidade Livre de Bruxelas e de instituições bolivianas. Para os especialistas, cada fragmento descoberto em Palaspata amplia a compreensão de como os povos antigos articularam poder, espiritualidade e comércio nos Andes, e traz à tona um capítulo ainda pouco compreendido da história pré-colombiana da América do Sul.