A violência urbana teve um salto em São Paulo este ano. Os versos de “Sampa”, de Caetano e Gil, sobre a dura poesia concreta das esquinas da cidade ganham outra conotação na leitura das estatísticas de criminalidade: nos dois primeiros meses, a capital registrou 20% mais furtos e quase 4% mais roubos do que no mesmo período de 2021. O crime que mais preocupa as autoridades, segundo a Polícia Militar, é o roubo de celulares por bandidos em motocicletas, para a realização de transferências por PIX, o pagamento eletrônico instantâneo criado pelo Banco Central.
Outra modalidade que tem se popularizado é a de gangues que invadem condomínios para furtar bicicletas. Na esteira do aumento da violência e da sensação de insegurança, a Guarda Civil Metropolitana anunciou que parte de seus agentes passará a portar fuzis no patrulhamento. Até então, eles usavam apenas armas curtas.
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Com o arrefecimento da pandemia e a volta da população às ruas, os chamados crimes de oportunidade retornaram com força, segundo o coronel Álvaro Batista Camilo, secretário-executivo da Polícia Militar de São Paulo e ex-comandante-geral da instituição. Outra razão para o incremento de roubos e furtos, na opinião dele, é o aumento da população em situação de rua, devido à “desordem causada pela mendicância e o ambiente propício para o crime”.
Camilo explica que roubos e furtos acontecem de forma mais agressiva e com uso de motos. Os criminosos, muitas vezes, se vestem como entregadores de aplicativos, carregando mochila com a logomarca das empresas de delivery, para disfarçar suas intenções. Escolhem a moto também pela alta capacidade de fuga no trânsito de São Paulo. Camilo explica que a PM tem concentrado sua atuação na prevenção dos roubos, que podem acabar em latrocínio, e na fiscalização das motos. A operação Capital Mais Segura, com início em março, prendeu 54 pessoas em flagrante, apreendeu nove adolescentes e capturou 54 procurados pela Justiça.
"Nesses primeiros três meses, já apreendemos mais de seis mil motos. No ano passado e retrasado, foram cinco mil por ano. Já a Polícia Civil tem atuado fortemente com lojas que trabalham com peças de motos roubadas", afirma Camilo.
Diante do aumento da criminalidade, a população tem se organizado para prevenir delitos não mais de forma individual, mas coletiva. As medidas vão desde a contratação de agentes de segurança, inclusive armados, até a criação de redes de comunicação, com grupos de WhatsApp, para trocar informações e criar planos de contenção de crimes.
Uma das medidas mais recentes é a instalação de câmeras nas ruas ligadas ao Detecta, um sistema de monitoramento do governo de São Paulo que combina o uso destes equipamentos com um banco de informações policiais da América Latina. Esses aparelhos têm resolução superior aos adotados pelo projeto City Câmeras, da Prefeitura de São Paulo. Eles permitem identificar, pela placa, por exemplo, se um veículo suspeito que esteja num local com câmeras é roubado ou não.
Pacaembu é monitorado
Moradores do Pacaembu, bairro nobre da região Oeste, uniram-se em rede há cinco anos, e hoje não há uma rua no bairro que não esteja interligada. A mais nova medida foi a instalação de doze circuitos e centenas de câmeras de inteligência artificial, ao custo de R$ 5 mil cada, em pontos de acesso do bairro, ligadas ao sistema Detecta — as últimas ainda estão sendo instaladas. Estima-se que cerca de 20 associações de moradores aderiram aos aparelhos no estado.
Tutora da vizinhança solidária do Pacaembu, uma moradora, que prefere não se identificar por questões de segurança, conta que a instalação dos equipamentos já resultou na elucidação de um crime e na identificação de um caminhão em área proibida que destruiu o cabeamento urbano.
"Quando cada um fazia a segurança de sua casa, ainda estávamos inseguros na rua. As parcerias e a integração dos sistemas individuais são o grande diferencial" comenta a moradora. "Quando identificamos alguém, a polícia vem e aborda. Com isso, damos um recado muito claro à bandidagem."
Para o sociólogo David Marques, coordenador do Fórum Brasileiro de Segurança, o uso dessas imagens para fazer uma investigação e levar à responsabilização dos infratores é bem-vindo, mas é preciso certa cautela:
"Principalmente num país como o Brasil, em que as discussões sobre segurança pública ainda criminalizam a pobreza e têm um marcador racial forte. É necessário cuidado para que a palavra final não seja atribuição da sociedade civil."
Guarda civil passa a suar fuzil
Desde a última segunda-feira, 140 guardas civis circulam por São Paulo portando fuzis e carabinas. Até então, eles só usavam armas curtas. A novidade foi permitida por um decreto presidencial de 2019, que alterou as normas do Estatuto do Desarmamento e suprimiu o dispositivo que vedava o porte de armas de uso restrito pelas guardas municipais. O decreto é contestado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Segundo a Secretaria municipal de Segurança Urbana, 240 agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM) foram treinados para usar armas longas. Até o final do ano, outros 600 profissionais serão habilitados. O total de integrantes aptos representará 14% do efetivo, de 5.900 guardas. Em nota, a prefeitura informou que guardas da Inspetoria de Operações Especiais (IOPE) farão uso dos fuzis T4, calibre 5,56 x 45 mm; e os das inspetorias de Defesa Ambiental e Regionais utilizarão as carabinas CT9, calibre 9 x 19 mm.
A compra das armas foi feita com recursos de emenda parlamentar do vereador Delegado Palumbo (MDB). Em julho do ano passado, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), publicou no Diário Oficial um decreto que liberava R$ 400 mil para a compra de dez fuzis e 25 carabinas.
Fuzil é arma de guerra
Para o policial federal Roberto Uchôa, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o uso de armas longas pela GCM é um desvirtuamento do papel dos guardas de proteger o patrimônio público municipal (bens, serviços e instalações). Arma de alta letalidade, adotada por grupos táticos para o enfrentamento, o fuzil não é adequado, por exemplo, para ações de controle de multidões, um dos focos da GCM em São Paulo.
"Isso passa uma sensação de ostentação, de falsa segurança, e ainda coloca o próprio guarda em risco, porque ele pode se tornar alvo", afirma Uchôa. "Só países em guerra usam fuzil para fazer policiamento ostensivo e preventivo."
Em entrevista à TV Globo no ano passado, a então comandante da GCM, Elza Paulino, afirmou que o armamento seria usado pela IOPE em ações na Cracolândia e desocupações. A presença de armas longas na região é criticada pela defensora pública Fernanda Balera. Segundo ela, entre 2017 e 2021, a Defensoria Pública de São Paulo e o Ministério Público apuraram o desvio de função da Guarda devido a operações constantes, arremesso de bombas, tiros de projéteis de elastômero, formação militar com escudos e violação dos direitos das pessoas em situação de rua.
"A Cracolândia já é uma região de muita tensão. Imagina a guarda ali armada com fuzis, e sem que outras ações sejam adotadas. Ao longo desse tempo, a repressão da GCM naquele território não teve resultado. Nem para garantir segurança para a cidade nem para combater o tráfico", diz Fernanda.
Em 2021, a Defensoria encaminhou representação ao Tribunal de Contas do Município (TCM) com pedido de liminar para o reconhecimento da inviabilidade da emenda que permitiu a compra das armas longas. Fernanda diz que a instituição também prepara representação junto ao Ministério Público de São Paulo. Procurada, a GCM informou que não se manifestaria.