Começou na manhã desta quarta-feira (30) o tribunal do júri que vai julgar os ex-policiais militares Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz pelo assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes , ocorrido em 2018. A audiência, realizada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, estava marcada para as 9h, mas começou com uma hora de atraso.
Emocionada, a segunda a depor, Marinete da Silva, mãe da ex-vereadora, disse que "tiraram um pedaço" da sua vida após a morte da filha. Já Monica Benício, viúva da vereadora, a terceira a depor, teve que interromper sua fala diversas vezes por conta do choro, e afirmou que a dor que sente pela perda da esposa a acompanha diariamente.
O que disseram as testemunhas?
A primeira a depor foi Fernanda Chaves, ex-assessora e amiga de Marielle, que sobreviveu ao ataque. Ela saiu do país após o atentado, já que era também um dos alvos dos assassinos.
"Não tinha como a vida ser a mesma depois daquele pesadelo, daquele atentado, daquele crime bárbaro. Foi muito doloroso para mim. É muito dolorido ter que sair do meu país. E também dói muito não poder ter participado dos ritos de passagem da minha amiga [Marielle]", disse.
Fernanda escapou dos disparos por se abaixar no banco de trás do carro. Imagens dos disparos foram exibidas a ela durante o depoimento.
A segunda testemunha a ser ouvida foi a mãe de Marielle, Marinete da Silva. Ao contrário de Fernanda, Marinete não se opôs a depôr na presença dos acusados. Ela comentou a ausência da filha nestes 6 anos.
"A falta que minha filha faz é imensurável. Falar o quanto ela fez falta não tem como definir", disse. "A cada dia que eu penso na minha filha é como se falassem no meu coração que um pedaço de mim foi tirado. Cada vez dói mais", completou.
A terceira testemunha a depor foi Monica Benício, viúva de Marielle. Emocionada, ela caiu no choro logo no início do depoimento, quando foi perguntada sobre como sua esposa era no cotidiano.
"A Marielle era uma das pessoas mais companheiras que eu conheci, no sentido mais generoso e bonito que essa palavra pode ter", respondeu.
Ao ser questionada sobre a falta que Marielle faz, Monica voltou a se emocionar. "Eu lembro do último segundo que eu vi a minha esposa com vida. E a última coisa que ela me disse foi: 'Eu te amo'. Eu fiquei pensando depois no privilégio que é poder ter essa frase como a última dela", disse.
"Depois da morte, foram algumas as vezes que eu ameacei me matar e algumas que eu tentei", admitiu, emocionada. "Essa dor da ausência, que se apresentada diariamente, cobre todos os detalhes", completou.
"A única justiça possível seria não precisar estar aqui e ter a Marielle e o Anderson vivos. Mas, para além disso, do que é possível, eu espero que se faça a justiça que o Brasil e que o mundo esperam há seis anos e sete meses. [...] Para que a gente possa dar o exemplo de que crimes como esse não podem voltar a acontecer", disse Monica, quando perguntada sobre as expectativas do julgamento.
A quarta pessoa a depor foi Ágatha Arnaus Reis, viúva de Anderson. Ela relatou sobre os sonhos que o marido tinha de trabalhar em uma companhia aérea, e contou que a posição de motorista era vista como temporária por ele.
Anderson deixou um filho que tinha, na ocasião, um ano e oito meses. "Ele precisa de fono, tem oito anos hoje e não fala. Ele começou a andar com cinco anos, já passou por sete cirurgias", contou Ágatha, ao citar como é lidar com a maternidade sem Anderson.
Arthur teve o diagnóstico da doença atrasado, pois precisava de um exame genético que dependia da coleta de Anderson. O filho do casal apresentou problemas no crescimento logo após ao nascimento.
Ágatha mencionou que Anderson queria ser pai e que era uma pessoa muito boa para todos ao seu redor. Foi mostrado vídeo no tribunal sobre o momento em que o motorista ficou sabendo que era pai. Emocionada, a viúva começou a contar uma história para resumir a relação do marido com as pessoas.
"Tem uma história que define bem quem o Anderson era. Tem uma sala na Perinatal, onde o Arthur (filho do casal) nasceu para os pais escreverem qualquer coisa, daquele dia mais difícil para desabafar. Era horrível, era uma sala que está todo mundo muito mal, com medo do que vai acontecer com seus filhos. Só tinha um benheiro e os pais chorando. A primeira vez que a gente ficou nessa sala, o Anderson achou horrível, a gente foi para casa, já tinha recebido alta. No outro dia, ele levou uma garrafa térmica com café e fez quase todos os pais beberem café para dar uma melhorada. Ele era um tipo de pessoa. A pessoa que fazia qualquer dia, por pior coisa que parecesse, ficar melhor. O Arthur perdeu essa pessoa, que fazia o mundo ficar melhor”.
Em uma das últimas perguntas, um advogado perguntou para Ágatha o que ela espera do julgamento.
“Eu espero ver as pessoas que me tiraram o Anderson, que tiraram pelo pai do Arthur, pagaram pelo que elas fizeram. Eu não substituo o Anderson de forma alguma para o Arthur. Eu nunca, por mais que consiga mostrar um pouco do que ele representa para mim e para Arthur, eu não consigo mostrar de tudo de bom que ele tinha no mundo. O Anderson é irrepetível. Ele é alguém que não existe outro igual. O Arthur nunca, na vida, vai ter algo tão bom do que ele teria se o Anderson tivesse aqui”, disse Ágatha em lágrimas.
Perguntada sobre as mensagens que recebeu nas redes sociais, Ágatha conta que muitas pessoas se solidarizaram com a perda da família, porém recebeu alguns conteúdos agressivos.
“Pela dimensão que teve, da morte da Marielle e do Anderson, alguns casos surgiram. [...] Eu tive um relacionamento depois do Anderson e chegaram a falar: ‘Quem fica viúvo mesmo é quem morreu’, ‘Nossa, foi muito rápido, com essa cara de santinha’, coisas nesse sentido. [...] Eu recebi fotos deles mortos, recebi charges, recebi mensagens de gente que pensava que sabia alguma coisa sobre o caso, não foram tantos, mas foram em momentos específicos”.
A defesa do acusado Ronnie Lessa e jurados não fizeram perguntas.
A quinta testemunha a depor foi Carlos Alberto Paúra Júnior
A quinta pessoa a depor foi Carlos Alberto Paúra Júnior, agente da Polícia Civil do Rio, que participou ativamente das investigações da localização do carro dos assassinos.
Carlos comenta que assumiram o caso uma semana após o crime e tiveram acesso às imagens do veículo do crime e a placa. Segundo o agente, o departamento conseguiu descobrir que o carro do crime foi clonado.
“No começo, não queríamos informar para a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) Rio a placa, mas tínhamos as ruas, porque não ia fazer muitas informações. [...] Com o avançar das investigações, o pessoal de campo começou a recolher as câmeras do dia do fato. Então, a gente conseguiu fazer o trajeto que o veículo fez”, explica Carlos.
Carlos explica que a ideia de checar as câmeras surgiu por ter um evento de grandes proporções no Rio de Janeiro. Ao consultar a CET Rio, descobriu que algumas câmeras não estavam monitorando o fluxo de carros, por falta de pagamento da prefeitura. Os equipamentos, porém, gravaram algumas imagens.
O agente de segurança explica que o carro do crime foi clonado em 2016 e que ficava no bairro Campo Grande. Um mês antes das mortes de Marielle Franco e Anderson do Carmo, o veículo foi visto em alguns lugares frequentados pela vereadora.
Apesar de ter monitorado o carro clonado, Carlos conta que a investigação falhou após jornalistas divulgarem o número da placa. Ele explica que fez parte do rastreio dos aparelhos celulares de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz.
A sexta testemunha a depor foi Luismar Cortelettili
A sexta pessoa a ser interrogada pelo júri foi o agente da Polícia Civil do Rio Luismar Cortelettili. Testemunhas de defesa de Ronnie Lessa:
Luismar conta que o registrou que o sinal do celular de Queiroz foi rastreado na localização próxima à casa de Lessa. Às 10h30 da noite, os dois teriam se deslocado para uma região do Jardim Oceanico, na Barra da Tijuca.
A perita criminal Carolina Rodrigues Linhares, testemunha do Ministério Público, conseguiu comparecer ao julgamento. Foi exibido um vídeo com o testemunho dela durante as fases iniciais do processo.
Testemunhas de defesa de Ronnie Lessa
O delegado da Polícia Federal, Guilhermo Catramby, foi a oitava testemunha a ser ouvida. Ele foi chamado pela defesa de Ronnie Lessa.
Ele colheu o depoimento de Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, em relação premiada. O delegado esclareceu alguns pontos sobre a investigação e enfatizou que teve dificuldades com a falta de provas sobre quem mandou matar Marielle Franco
Por volta das 18h40, o agente federal Marcelo Pasqualetti foi chamado para dar seu depoimento. Ele respondeu perguntas técnicas sobre o caso e foi dispensado.
Testemunhas de defesa de Élcio de Queiroz
A defesa do réu desistiu dos depoimentos das testemunhas que havia requerido anteriormente.
Interrogatórios
Com o fim dos depoimentos das testemunhas, começou o interrogatório dos réus. Ronnie Lessa, assassino confesso de Marielle e Anderson, foi o primeiro a depor. A juíza pediu que Élcio de Queiroz fosse retirado da sala. Os dois estão depondo por meio de videoconferência.
Na ocasião, Lessa detalhou como foi o planejamento da morte da vereadora. De acordo com ele, uma pessoa [que está sob investigação e não pode ter o nome mencionado] falou com ele sobre o plano, mas ele disse que não conhecia Marielle.
"Ele já tinha me adiantado qual seria a proposta e o que eu ganharia com isso. Aquilo ali foi chocante. Eu aceitei. Marcamos a primeira reunião com os mandantes, tivemos com os mandantes pessoalmente, e aí nessa reunião eles me disseram o nome. Eu não conhecia a Marielle, nunca tinha visto ela", disse ele.
Ele ainda afirmou que os mandantes exigiram que ela não fosse morta próxima à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, o que, para ele, seria "mais fácil", já que era um lugar que ela ia com mais frequência. Isso porque eles não queriam que a Polícia Federal se envolvesse nas investigações do caso.
"Na minha opinião, eu achava que a questão da Câmara dos Vereadores era somente para não chamar atenção de algum vereador. Só que depois de todo esse processo, que eu li a denúncia, que eu vi que existe uma Lei que se ela morresse ao sair da Câmara dos Vereadores, a Polícia Federal entraria automaticamente no caso", disse ele.
Lessa disse que a escolha de Queiroz para o assassinato foi a expertise no volante, além da confiança. Ele confirma que o amigo aceitou o caso sem fazer nenhuma pergunta.
“Eu já falei com ele: ‘só não me pergunte quem é e para que que é’ [...] Só falei em vantagem com ele (Queiroz) quando foi para tratar os valores”, confirma Lessa.
O autor do crime foi perguntado sobre o seu enriquecimento. Ele explicou que os seus ganhos foram referentes a uma academia, no qual era dono e vendeu o local posteriormente. Além disso, Lessa era dono de quiosques na praia.
Entretanto, Lessa também se surpreendeu com o valor pago pelas execuções.
“Os mandantes colocavam a Marielle como uma pedra no caminho, que ela ia atrapalhar. Então, eles iam dar um jeito, com nossa presença ou não. A gente ia ganhar dois loteamentos, com 500 terrenos cada, o valor de cada lote era de R$ 100 mil. Então, daria 50 milhões para cada loteamento. Uma das pessoas seria responsável por tudo para fazer os dois condomínios. Realmente era muito dinheiro. A parte que ficaria deles (mandantes), eu não sei o que iam fazer. A minha parte era só para mim e para o Macalé. Quando eu decidi chamar o Élsio para isso, eu nem quis chamar ele dentro disso, não quis criar expectativas. Eu tenho muita cautela, porque sem querer o Élsio fala, mas quando ver ele fala que não devia. [...] Ele é meu amigo e um dia queria abraçar chorar com ele e dizer que besteira que fizemos”, detalha.
Em um dos momentos do depoimento, Lessa aproveitou para pedir perdão as famílias de Anderson Gomes e de Marielle Franco. Ele também ressaltou que está fazendo o máximo para reparar os danos que causou e que nenhum dos envolvidos irá ficar impune.
“Eu gostaria de aproveitar a oportunidade, até pedindo licença para vossa excelência, com absoluta sinceridade e arrependimento, pedir perdão às famílias do Anderson e da Marielle, a minha própria, a dona Fernanda e a sociedade dos patifes atos que me trouxeram aqui. Infelizmente não podemos voltar no tempo, mas hoje tento fazer o possível para amenizar essa angústia assumindo os meus atos e trazendo a tona todos os personagens que estão envolvidos nessa história, de cabo a rabo. Hoje eu tento fazer isso para tirar o peso da minha consciência. Eu sei que nunca vou trazer essas pessoas de volta, mas precisava pedir perdão a essas pessoas, inclusive a minha família, ninguém quer o pai preso, nenhuma mulher quer o marido preso. Eu fiquei cego, fiquei louco atrás desse [dinheiro]. Foram 25 milhões. Eu tiro um peso das minhas costas confessando o crime. Se eu puder amenizar isso, vou fazer o máximo. Vou cumprir meu papel até o final. Tenho certeza absoluta que a justiça vai ser feita. Hoje foi só uma parte e tenho certeza que ela vai ser feita no STF. É da base ao topo dessa pirâmide, sem exceções”, enfatiza.
Após o depoimento Ronnie Lessa, foi a vez de Élcio de Queiroz responder as perguntas do júri. Ele conta que começou a se envolver no caso ao ter contato com o carro usado no crime.
“Eu começo a ter ideia da situação quando tive contato com o veículo usado na operação. Eu tinha um carro antigo, deu problemas para a bateria e Ronnie tinha uma bateria nova na casa dele e me emprestou essa bateria. Ele me pediu a bateria de volta, porque ele estava com um “carro ruim”, que é um veículo de procedência duvidosa", conta.
Queiroz detalha que Lessa iria executar Marielle antes dele entrar no caso, porém a operação falhou.
“No ano novo de 2017 para 2018, ele (Lessa) conta que estaria nesse ‘trabalho’, que seria um alvo, que seria uma mulher e que estavam a meses andando com esse carro e que tiveram uma oportunidade de cometer o crime e não aconteceu. [...]. Ele (Lessa) estava muito nervoso, porque o motorista refugou e não emparelhou com o carro e não conseguiu concluir a execusão”, conta.
Élcio Queiroz também foi ouvido. Ele contou que Ronnie Lessa o convidou para fazer um "trabalho", mas que não informou que era para assassinar Marielle. Élcio explicou que foi chamado para dirigir e que apenas foi enviado a foto da vereadora.
Ele também falou que a imagem estava em um aplicativo de mensagem criptografada. por isso sumiu. Élcio disse que não conhecia Marielle.
Antes de se encontrar com Lessa, Queiroz falou a esposa que iria assistir um jogo de futebol na rua. O rapaz relatou que só soube que iria participar do assassinato no momento em que estacionaram o carro e Ronnie se "equipou" para o crime.
Élcio relembrou que, momentos antes do crime, tentou convencer Ronnie a não matar Marielle.
Após o crime, Queiroz relatou que ficou apavorado quando soube que Marielle e Anderson estavam mortos. Ronnie Lessa tentou acalmá-lo em um bar, segundo Élcio.
O caso
Marielle Franco e Anderson Gomes foram assassinados em 14 de março de 2018, no Rio de Janeiro. Investigações revelaram que o réu Lessa monitorou Marielle antes do crime e, junto com Élcio, disparou contra o carro das vítimas. Eles respondem por homicídio triplamente qualificado e tentativa de assassinato da assessora Fernanda Chaves, que sobreviveu. O Ministério Público busca a pena máxima de até 84 anos, e ambos estão presos desde março de 2019.
Nove testemunhas serão ouvidas no julgamento, incluindo Fernanda e as viúvas das vítimas. Lessa e Queiroz confessaram o crime e apontaram mandantes, incluindo políticos e um delegado, que também estão presos e sob investigação no STF.
O júri popular terá 21 membros, com sete selecionados para decidir sobre a culpabilidade dos réus. O julgamento, complexo e com muitos documentos, deve durar mais de dois dias, e os jurados permanecerão incomunicáveis para evitar influências externas. O objetivo é permitir que cidadãos comuns decidam sobre crimes graves.
Acompanhe ao vivo:
*Em atualização