Lei de cyberbullying foca em prevenção, mas não responsabiliza redes

Sancionada em janeiro deste ano, a lei tipifica bullying e cyberbullying no Código Penal, mas esbarra na regulação das redes sociais

Foto: Marcello Casal/Agência Brasil
Lei prevê pena de 2 a 4 anos de reclusão para a prática do cyberbullying

O Brasil é o 4º país no mundo com mais casos de bullying registrados entre 2022 e 2023, segundo dados da ONG internacional "Bullying Sem Fronteiras". As estatísticas apontam para 69.554 casos registrados no período, deixando o país atrás somente de Espanha, Estados Unidos e México.

A alta taxa de casos foi um dos elementos que fizeram com que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionasse, em 15 de janeiro, a lei nº 14.811/2024, que tipifica o bullying e o cyberbullying como crimes no Código Penal,  especificamente no artigo que trata de constrangimento ilegal, inserindo outros quatro crimes praticados contra crianças e adolescentes no rol dos crimes hediondos do  Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Com a medida, o bullying passa a ter pena prevista de multa e o cyberbullying – prática do bullying no ambiente virtual –, reclusão de 2 a 4 anos. "São penas adequadas e proporcionais aquilo que a legislação brasileira prevê", afirma o vice-presidente da OAB-SP, Leonardo Sica.

"A gente tem uma escala de crimes, desde a ameaça até o homicídio, e isso tem que ser equacionado dentro de uma proporcionalidade", explica Sica, que é advogado, doutor e mestre em Direito Penal pela USP. "Existe no Brasil o conceito de proteção integral. Para crianças e adolescentes, temos sempre uma visão mais protetiva".

"A pena de multa por bullying resolve – não precisamos prender uma criança ou submeter a uma sanção corporal uma criança que pratica bullying. A multa é mais do que suficiente", argumenta o vice-presidente, ao explicar também que a "pena mais alta para o  cyberbullying se justifica, tendo em vista o potencial difusor da internet".

Para Celso Vilardi, advogado criminalista e professor da FGV-SP, a "pena de multa para o bullying torna esse crime um delito de menor potencial ofensivo". Por essa razão, Vilardi acredita "que nem deveria estar no sistema penal".

Ao analisar a prática de bullying no ambiente virtual, o professor da FGV-SP julga a "pena do cyberbullying um pouco exacerbada", e diz que "poderia ser menor, embora eu reconheça que nós precisávamos de uma legislação que regulasse esse tipo de conduta nas redes sociais em função do impacto da internet".

O estudante será eliminado se estiver no local de prova com: óculos escuros, boné, chapéu, caneta de material não transparente, lápis, lapiseira, borrachas, réguas, corretivos, livros, anotações, relógio de qualquer tipo, fones de ouvido e quaisquer dispositivos eletrônicos.. Foto: Reprodução: Flipar
Nova lei que tipifica prática de bullying e cyberbullying foi aprovada em janeiro de 2024. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Lei define penas mais duras de bullying e ciberbullying no Brasil. Foto: Agência Brasil
Prefeitura do Rio quer banir celulares em horário escolar. Foto: Divulgação
Pesquisa sobre bullying foi feita com 2,7 mil alunos. Foto: Adriana Corrêa/Agência Senado
Estudantes e pais na Universidade Paulista no bairro do Paraiso . Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil - 05/11/2023
Crianças utilizando celulares na escola. Foto: Reproduçaõ: Pexels

Outro elemento importante na sanção da lei foi a alta taxa de violência nas escolas – principal foco da criminalização da prática. Em outubro de 2023, um aluno do primeiro ano do ensino médio na Escola Estadual Sapopemba, no Jardim Sapopemba (zona leste de São Paulo),  matou a tiros uma estudante de 17 anos e feriu outras duas.

O adolescente efetuou diversos disparos e foi apreendido pela Polícia Militar (PM), que o encaminhou à Vara da Infância e Juventude. Além de relatos e vídeos, a família do jovem informou que registrou um Boletim de Ocorrência (B.O) na delegacia meses antes do atentado, denunciando a  prática de bullying.

Nas redes sociais, porém, a repercussão do caso indicou o tamanho do problema: nos comentários de vídeos e fotografias, dezenas de publicações ofensivas proliferavam – contra o autor dos crimes e contra as vítimas, numa prática recorrente no uso das plataformas. Essas mensagens estavam abertas, expostas e, inclusive, acessíveis a menores de idade.

"Isso é algo que a gente tem que olhar com mais atenção, porque existe uma falta de controle", afirma Sica, ao ser perguntado sobre a implementação de medidas mais severas para proteger menores de idade na internet. 

"Para criar um perfil no  Instagram, por exemplo, a plataforma diz que a idade mínima é 13 ou 14 anos. Mas a gente sabe que crianças muito menores têm perfil e isso não tem controle nenhum", expõe o advogado. "Me parece bastante sério. Temos que atribuir às plataformas um dever mais ativo de evitar que crianças e adolescentes tenham perfis em rede social quando isso não é permitido".

O vice-presidente da OAB-SP argumenta que é "muito claro para nós que a melhor maneira de proteger crianças e adolescentes de ambientes arriscados na internet é reduzir o uso da internet".

Ele complementa: "veja, não estou preconizando o retrocesso, mas por que uma criança precisa utilizar a internet hoje em dia? Para alguma coisa que tenha a ver com a escola dela e eventualmente um uso recreativo supervisionado por adultos. A rede mais utilizada por crianças e adolescentes é o YouTube, e ele permite acesso a tudo", diz. 

"Então precisamos ter uma lei que restrinja o acesso de crianças e adolescentes nas redes sociais e fazer com que as plataformas cumpram as próprias regras, que não são cumpridas".

Regulação das redes sociais

O entrave político do presidente Lula com as big techs ocorre, pelo menos, desde 2018, quando foi impedido pela Justiça Eleitoral de disputar as eleições presidenciais e seu vice à época, Fernando Haddad (PT),  assumiu a chefia da chapa. Naquele ano, se popularizou o termo  "Gabinete do Ódio" para se referir a indústria de notícias falsas amplamente difundidas nas redes sociais, ligada ao ex-presidente  Jair Bolsonaro (PL) e cujo objetivo era mudar o jogo político.

"As eleições brasileiras de 2018 mostraram o alto custo a ser cobrado de sociedades que, dependentes de plataformas digitais e pouco cientes do poder que elas exercem, relutam em pensar as redes como agentes políticos", escreve o especialista bielorusso Evgeny Morozov em "Big Techs: a ascensão dos dados e a morte da política", livro lançado no Brasil em 2018 pela editora Ubu.

No final de 2023, a primeira-dama Janja da Silva teve seu perfil no X (antigo Twitter) hackeado por um adolescente de 17 anos, identificado pela Polícia Federal. Durante mais de uma hora, o  perfil permaneceu ativo com a publicação de ofensas,  xingamentos e conteúdos pornográficos.

​​"Foi tão difícil que o Twitter congelasse a minha conta", afirmou Janja. "Por 1h30 o seu  Elon Musk ficou muito mais milionário  com esse ataque", acusou, ao se referir ao CEO da plataforma.

"A gente precisa não só da regularização das redes, mas discutir a monetização dessas redes sociais, porque hoje não importa se é do bem ou do mal, eles ganhando dinheiro, está tudo bem. Ele estão acima de tudo, acima do mercado", complementou a primeira-dama.

Nessa quinta-feira (1º), Lula reiterou o compromisso do governo na tentativa de regulamentar as redes sociais, durante discurso na abertura do ano judiciário de 2024, no Supremo Tribunal Federal (STF).

“É preciso criminalizar aqueles que incitam a violência nas redes sociais, mas também é necessário responsabilizar as empresas pelos crimes que são cometidos nas suas plataformas, a exemplo da pedofilia, incentivo a massacres nas escolas e estimular a mutilação de adolescentes e crianças”, defendeu o presidente.

"Eu acho que o princípio de regulação da internet é o princípio que tem de proteger a liberdade de expressão, proteger a liberdade de reunião e proteger a capacidade de inovação que a internet traz para a economia, para as pessoas – desde que não se trate de crianças e adolescentes", defende Leonardo Sica, ao afirmar que as redes precisam ser responsabilizadas pelo controle, e não somente as famílias. "Quantos pais sabem usar o controle parental de uma mídia social?".

"Se tratando de uso de crianças e adolescentes, a gente tem que ser menos permissivo e liberal com tudo aquilo que a internet traz de bom justamente porque a experiência concreta estava mostrando o quão nocivo é deixar a criança e o adolescente absolutamente livre para usar a internet", diz.

Liberdade de expressão 

"A questão da liberdade de expressão, que para mim pode ser considerada um direito fundamental absoluto na internet, deve ser vista para a criança e adolescente de uma maneira mitigada, porque crianças que não sabem se proteger, não sabem por onde navegar e muitas vezes não tem noção do que estão fazendo não podem, sob o pretexto de ter liberdade de expressão, ter a mesma liberdade de caminhar pela internet", avalia Leonardo Sica.

"Especialmente no caso de crianças e adolescentes, lembrando sempre da doutrina da proteção integral, temos que atribuir uma responsabilidade a mais específica para crianças e adolescentes – não para adultos – às plataformas sociais como há, por exemplo, uma responsabilidade jurídica a mais, ativa, das plataformas sociais na perseguição de casos de pedofilia", complementa.

Para Celso Villardi, a liberdade de expressão também "encontra limites na lei". "Sem trazer para o campo do direito penal, que é uma mania do legislador brasileiro, seria necessário ter uma lei mais abrangente, não no sentido de regular as opiniões e muito menos a liberdade de expressão, mas que criasse regras claras fora do direito penal para proteger as pessoas que são prejudicadas pelas redes sociais, com punições administrativas e de multa".

Na visão de Sica, "a lei [14.811] enfatiza muito a ação preventiva, e quando a gente está falando de crianças e adolescentes, a ação preventiva sempre é preferencial do que a ação punitiva".

Em São Paulo, o Colégio Marista Arquidiocesano, localizado na Zona Sul da capital, começou a promover em 2023 treinamentos de professores que prestam assistência aos alunos, por meio do programa "Escola Sem Bullying", em parceria com a Abrace - Programas Preventivos.

"Conseguimos implantar uma cultura de paz, em que os alunos se sentem seguros para expor suas dificuldades", explica Simone Alves Freitas Dias, responsável pela implantação do programa no colégio. "Além disso, os professores e equipe pedagógica ganham mais segurança no tratamento dos casos de bullying da escola", complementa.

Nas salas de aula dos ensinos fundamental e médio, os alunos têm acesso a um QR Code que os direciona ao espaço de denúncias anônimas da escola. "É uma maneira concreta do colégio mapear os possíveis casos", afirma Dias.

Nos colégios da rede pública, o MEC trabalha em orientações preliminares para apoiar as secretarias municipais e estaduais de Educação no desenho de suas políticas e programas locais de prevenção e combate à violência. 

Pela lei, essa competência fica a cargo dos gestores locais das redes e sistemas de ensino, mas é esperado que haja intimidação e penas mais severas contra agressores a partir da tipificação do crime no Código Penal.

O ministro da Educação,  Camilo Santana (PT), argumentou ainda em 2023 que tanto a pasta quanto os demais ministérios precisariam trabalhar em conjunto para diminuir qualquer tipo de violência nas escolas.

"As ações devem envolver o esporte, a cultura, a saúde, a educação, a formação, a captação, e um olhar cuidadoso para nossas crianças, jovens, professores e gestores", defendeu Santana.