Citado pela ONG Arte de Viver como uma medida para apurar as denúncias de abuso e assédio sexual de instrutores, o Departamento de Ética da instituição se preocupou mais em abafar as acusações do que em lidar efetivamente com os casos, segundo uma acusação feita em carta assinada por quatro mulheres que deixaram o colegiado. O departamento, criado em abril em função das primeiras denúncias, teria seguido orientações do criador da instituição, o guru indiano Sri Sri Ravi Shankar, para não investigar internamente os casos.
Na carta, com data de 2 de maio, quatro das seis mulheres que integravam o Departamento de Ética anunciaram seu desligamento “diante da condução autoritária e ineficiente por parte das lideranças da Arte de Viver Brasil”. Elas reclamam que constataram a “nulidade de nossa participação” e denunciaram “falta de alinhamento com a vontade das lideranças da organização” para escutar e acolher as supostas vítimas.
O grupo decidiu sair diante do que considerou “estarrecimento e tristeza, primeiramente frente aos abusos denunciados, e depois por nos levantarmos à ação sem encontrar o respaldo institucional necessário para concretização de um trabalho necessário”.
"Eu falava as coisas, mas nada era feito. Só ficavam me enrolando", resume Raquel Ferreira, que havia sido selecionada para receber os emails das denúncias. "Eu não queria fazer nada disso. Foram dez anos da minha vida (oito como instrutora) em que defendi e representei essa instituição, um lugar que era sagrado para mim. Só faço isso agora porque está claro para mim que a Arte de Viver não é um lugar seguro".
Cultura de submissão
Ferreira aponta uma cultura de submissão na instituição que favoreceria os abusos. Ela dá como exemplo as tarefas que voluntários e instrutores precisam fazer para os professores veteranos, como servir chá e cuidar da limpeza. Um desses instrutores, Swami Paramtej, é um dos denunciados por abuso sexual.
Raquel diz que conhece pelo menos mais 10 vítimas que acusam outros instrutores. Ela diz que as ordens de superiores, interpretadas como pedidos para abafar os casos, partiriam do próprio Sri Sri Ravi Shankar, segundo justificavam os diretores nas reuniões.
As acusações contra Paramtej foram o ponto de partida para a criação do Departamento de Ética. No dia 9 de abril, foi feita uma reunião com todos os instrutores, convocada pela direção. No encontro, foi informado, sem maiores detalhes, que Paramtej estava afastado por causa de denúncias e voltara à Índia.
"Naquele momento, já fiquei muito preocupada, porque houve várias falas complicadas, de gente desacreditando as denúncias ou culpando as vítimas. No dia seguinte, em um encontro que definiu a reabertura da sede da Barra (fechada durante a pandemia), uma integrante da direção me disse que deveríamos seguir em frente e não deixar que uma pessoa levasse a Arte de Viver para o ralo. Eu disse que o que levaria ou não para o ralo seria a forma que a gente lidasse com isso", relata Ferreira.
O presidente do novo departamento escolheu Raquel para receber as denúncias, e começaram as divergências. Segundo a ex-instrutora, suas sugestões recebiam como resposta que “o inimigo do bom é o ótimo”, e o importante era pôr o trabalho em prática e depois aprimorá-lo. Mas faltavam definições relevantes, como o protocolo do que deveria ser feito após a denúncia. A única resposta era que o acusado deveria ser afastado por 30 dias, para maiores apurações.
O estopim para a saída, diz Ferreira, foi uma reunião em que diretores repassaram uma orientação atribuída a Shankar: só deveriam ser tomadas medidas internas e o assunto não deveria ser tornado público.
"Considero que o guru mandou abafar o caso, ainda que não literalmente. Ninguém podia falar nada, os comunicados não chegavam nem aos voluntários (abaixo dos instrutores), que são quem movem a instituição. No site, as informações sobre o canal de denúncia ficam escondidas", relembrou Ferreira.
"No dia seguinte mandamos a carta, e assim que enviamos, fomos expulsas dos grupos de Whatsapp".
Outras pessoas ouvidas pela reportagem, e que não faziam parte do departamento, relataram a dificuldade em debater publicamente o assunto, e também citaram as expulsões dos grupos do Whatsapp. Procurado para comentar as novas acusações, o instituto não se pronunciou até o fechamento desta edição.
Na quinta-feira passada, quando algumas denúncias começaram a se tornar públicas, os eventos da Arte de Viver em São Paulo com a presença do guru indiano Ravi Shankar, ontem e na segunda-feira foram cancelados. A instituição diz que houve mudanças de última hora na agenda de Shankar.
Em um dos grupos de Whatsapp com voluntários e instrutores da ADV, uma das colaboradoras repassa uma mensagem com título “aviso urgente”, em maiúsculas e negrito, ao qual o GLOBO teve acesso. No texto, é dito que “diante do que estamos vivendo”, o guru teria achado melhor não vir mais para o Brasil.
"Eu já previa que, assim que começasse confronto público diante desses escândalos, os eventos seriam cancelados. É do feitio deles fugir desse tipo de cobrança", afirma Thaís Santos, que deixou o Departamento de Ética com Raquel.
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