“O que temos nesta cidade é tão potente que não pensamos em voltar para a capital”. Após ter saído criança do interior para viver na capital, Caio Nazaro, de 30 anos, rebobinou o tempo e fez o caminho de volta. Em março, ele deixou para trás os sonhos de morar em São Paulo para viver na minúscula Santo Antônio do Pinhal, com sete mil moradores, bem menor que Sorocaba, onde ele cresceu. Na bagagem, ele e a mulher levaram incríveis recordações do agito da Vila Mariana, um dos bairros mais boêmios da cidade, e gatilhos urbanos, memórias de assaltos recorrentes e até de sequestro.
Formado em Bioquímica, Caio é um dos milhares de desiludidos com as principais e mais populosas capitais do país, Rio e São Paulo, respectivamente com 6,7 milhões de habitantes e 12,5 milhões. Pesquisa do Datafolha, que ouviu 644 cariocas e 840 paulistanos entre os dias 5 e 7 de abril, revelou que mais da metade dos cariocas (59%) e paulistanos (55%) desejava deixar as capitais. Entre os inúmeros fatores, um se destacava: o medo da violência.
A partir da pandemia, o desejo de mudança de ares ganhou impulso. O Sindicato da Indústria da Construção Civil do Rio (Sinduscon-RJ) já sente a temperatura do fenômeno: no ano passado, a procura de moradores do Rio por casas no interior do estado teve alta de 27%. Em São Paulo, a porcentagem foi ainda maior: 37%.
Terror na Marginal
O presidente do Sinducson, Claudio Hermolin, explica que o impacto desse êxodo foi ainda maior no Rio, que registrou aumento de 42% da locação de imóveis — para períodos superiores a 12 meses, o que exclui as temporadas — em cidades menores.
"Em São Paulo, já havia muitas cidades de interior bem estruturadas e um mercado mais aquecido. No Rio, o mercado imobiliário de primeira moradia era praticamente nulo, o aumento foi super expressivo", avalia Hermolin, que acredita que a tendência permanece após o fim da pandemia. "Há muito profissional liberal que percebeu que não precisava mais trabalhar no escritório. Além disso, o custo, a qualidade de vida e a segurança foram outros impulsionadores".
A imobiliária Quinto Andar enviou, com exclusividade ao GLOBO, um levantamento de que, no primeiro trimestre deste ano, mesmo com a queda da Covid, as visitas a imóveis no interior de São Paulo tiveram incremento de 10%. O interior paulista já atrai mais interessados do que a Região Metropolitana. Junto com o Instituto Talk, a imobiliária ainda fez uma enquete que apontou que 71% dos moradores de capitais e regiões metropolitanas do país também “se enxergam morando fora dos grandes centros urbanos no futuro”.
Nos anos em que foi morador da cidade de São Paulo, Caio foi assaltado três vezes e até hoje não esquece do pânico que viveu, aos 19 anos, durante um sequestro relâmpago em 2011. Foram duas horas e meia de desespero pela Marginal Tietê, com gritos, xingamentos, armas e ameaças.
"Um dos sequestradores falava que ia nos matar. Eu entreguei cartão de crédito, dei senha de tudo, e ainda ligaram para o meu pai pedindo mais dinheiro", recorda-se Caio, que acalma a cabeça do passado turbulento na paisagem bucólica do interior, ao lado da companheira que, atacada na rua por um ladrão de celular, passou a sofrer com ansiedade. "Quando saíamos juntos e uma moto reduzia a velocidade, ela apertava a minha mão".
A pandemia tornou mais urgentes as mudanças radicais, e o home office criou a oportunidade que faltava. Regina Correa, de 41 anos, se prepara para deixar a cidade do Rio de Janeiro com marido e as filhas Alice e Júlia, de 11 e 3 anos. Médica especializada em radiologia mamária, ela conta que jamais imaginou, quando chegou à cidade em 2002 para estudar Medicina, que o medo e o estresse a afugentariam.
Leia Também
"Aqui no Rio é literalmente assim: você sai e não sabe se volta", diz Regina, que já não consegue evitar os maus pensamentos. "Eu nem sei dizer qual foi a última vez que saí à noite com a minha família para ir ao cinema. Minha mãe mora em Teresópolis e, quando está aqui, coloca a bolsa dentro de uma sacola plástica para evitar assaltos. E, antes de sair de manhã, consulto grupos e plataformas para saber como está o dia. É padaria assaltada, bala perdida que passa perto de você, a violência bate na sua cara. A sensação é de que logo você será o próximo".
Entre outras coisas, o Datafolha apurou que 64% dos moradores do Rio têm muito receio de ser vítima de assalto, contra 57% em São Paulo. Célia Regina, de 48 anos, não chegou a virar estatística, mas se mudou em janeiro para Teresópolis, na Região Serrana, porque não queria pagar para ver. Pesou na decisão o fato de a cidade, em 2017, ter sido considerada a mais segura do estado pelo Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Professora de artes da rede pública desde 2002, Célia morou por 20 anos em Brás de Pina, na Zona Norte. Há muito tempo o bairro, dominado pelo tráfico, já não combina como o apelido de Princesinha da Leopoldina. Há relatos de barricadas nas ruas, homens fazendo rondas de moto e circulação de jovens armados com fuzis.
"Chegou a tal ponto que uma amiga recebeu o seguinte aviso do tráfico pelo celular: “quem usar branco vai queimar", conta, lembrando uma das muitas regras aleatórias determinadas pelos “donos” do bairro".
Assalto perto de casa
Célia foi se dando conta de que a realidade violenta começou a ditar seu comportamento e até mesmo as visitas eram orientadas a chegarem de carro com rádio desligado, vidros arriados e faróis baixos. A gota d’ água foi ter visto pela janela de casa, em julho de 2021, a execução de um policial.
"Nós passamos a pautar nossas ações pelo medo. Se você sai de casa e não sabe se volta em segurança, o seu emocional fica abalado", desabafa.
Professor de administração, Alessandro Paiva, de 48 anos, saiu do Méier para Valença, no interior do Rio, após o filho de 14 anos ser assaltado perto de casa. Coordenador do Centro Universitário de Valença (Unifaa), ele queria qualidade de vida e economia nos deslocamentos:
"Hoje, levo cinco minutos a pé de casa até o trabalho".
Entre no canal do Último Segundo no Telegram
e veja as principais notícias do dia no Brasil e no Mundo.