Regularizar a casa onde vive é um sonho para milhões de famílias que buscam o alívio e a segurança de viver num imóvel devidamente documentado. Mas, em Petrópolis, essa sensação de estabilidade virou medo e frustração para centenas de famílias que possuem títulos de regularização fundiária de casas localizadas em áreas de risco. O governo do estado do Rio, através do Instituto de Terras e Cartografia, o Iterj, concedeu documentos que legalizaram as casas de 732 famílias distribuídas em três comunidades de Petrópolis onde, segundo o Plano Municipal de Redução de Risco (PMRR), há um total de 1.140 moradias em risco.
Na comunidade 24 de maio, que voltou a registrar deslizamentos na chuva deste domingo - depois de sete casas desabarem no dia 15 fevereiro -, 72 famílias receberam títulos de concessão de uso do estado. Os documentos foram distribuídos em 1998, dez anos após outra chuva histórica em Petrópolis, que deixou 134 mortos. Essa é uma das áreas analisadas no detalhamento do PMRR, apresentado em 2017 com a recomendação de reassentamento de 7.177 famílias.
Mesmo com os termos de concessão de uso em mãos, essas famílias tiveram que deixar suas casas. É o caso da aposentada Elza Teixeira de Oliveira, de 86 anos. A casa dela, no Morro do Estado, foi atingida pelo barranco que deslizou, deixando uma de suas filhas, de 56 anos, ferida com uma fratura na costela. Além disso, com a lama que invadiu os cômodos, as paredes da cozinha e do banheiro desmoronaram.
"Na época, eu fui chamada para receber um papel grande, que eu tenho até que ver se ficou lá em casa debaixo do barro ainda. Eu ainda não sei como está, tem muita coisa lá dentro", lamenta Elza, que foi morar com uma amiga, mas diz que quer voltar para casa: "é só tirar aquela terra de lá, eu gosto muito de lá".
Vó Elza, como é conhecida, trabalhou a vida toda como passadeira e foi, aos poucos, erguendo a moradia no Morro do Estado.
"Era um cômodo de lata, tudo de lata, depois eu fiz de tábuas, de madeira, e depois consegui fazer de tijolo e foi crescendo graças a Deus. Até agora, moravam comigo um filho, uma nora e um neto. Meus filhos nasceram lá. Há quantos anos estou aqui? Daqui eu sei de tudo, do princípio ao final".
Nas duas últimas tempestades, não houve mortos no Morro do Estado. Em fevereiro, as potenciais vítimas escaparam por sorte, já que estava de dia e as famílias conseguiram sair correndo a tempo.
As casas que desabaram em fevereiro no Morro do Estado não tinham títulos de regularização, pois estavam em terreno "do príncipe" - como os moradores chamam as áreas da cidade herdadas por Dom Pedro II. Mas, assim como a casa da vó Elza vizinhos, poucos metros abaixo do deslizamento, dezenas de outras possuem a documentação e estão em risco. Com o risco de novos deslizamentos, a maior parte das casas foi esvaziada, apesar de ter documentos concedidos pelo governo estadual.
Moradora do Morro do Estado há 60 anos, Rosalina das Graças Paulo insistiu em permanecer na casa mesmo estando na direção de um grande barranco. Ela saiu apenas na noite da tempestade, em 15 de fevereiro, e depois retornou.
"Quando eu saí daqui por causa da chuva, eu carreguei meus documentos todos, inclusive o documento da casa. Levei tudo para a casa do meu filho. Enfiei tudo numa bolsa e, se minha casa caísse, pelo menos eu teria os documentos salvos comigo", conta Rosalina, que reclama que não houve visita da Defesa Civil ao local.
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Na falta de uma vistoria, que diria se é seguro ou não permanecer na casa, a aposentada decidiu ficar:
"Podem entrar aqui e saquear minhas coisas. Prefiro ficar aqui, nenhum técnico veio vistoriar nem nada. Só mandaram funcionários da limpeza para lavar e tirar a lama".
Outras comunidades
Além da comunidade 24 de maio, que tem, segundo o PMRR 265 imóveis em locais perigosos, casas de outras duas comunidades de Petrópolis que entraram nas áreas de risco classificadas pela prefeitura possuem títulos de regularização fundiária concedidos pelo estado. Na comunidade do Alemão (na rua Hans Bistritshan, na altura da Av. Barão do Rio Branco), foram concedidos 214 Termos Administrativos de Comprovação de Posse e Moradia. Segundo o mapa do PMRR, no Alemão há 338 casas em risco. Pelo contorno do mapa, é o lugar mais fácil de constatar que na área de risco houve regularização fundiária. A mancha da área demarcada pelo Iterj é quase idêntica à mancha do local de risco definida do PMRR.
Já na comunidade Unidos Venceremos, foram distribuídos 420 títulos de concessão de uso. Mas lá, apenas 12 moradias em áreas classificadas como de risco pelo PMRR. Ou seja, a imensa maioria das casas é segura e é provável que essas 12 remanescentes não tenho título.
Próximo à comunidade 24 de maio, há 525 casas em área de risco na rua Antonio Soares Pinto, mais conhecida como Rua Nova. Mas, por ali não houve entrega de títulos pelo governo nem pela prefeitura. Parte do terreno também é “área do príncipe”, onde a Defesa Civil interditou várias casas por risco de rolamento de uma pedra sobre as construções.
Procurado, o Iterj afirmou que, com relação à área regularizada pelo estado, não foi notificado sobre a existência de áreas consideradas de risco na região da 24 de maio. Sobre as moradias em risco no Morro do Estado, o órgão disse em nota que não dispõe de informações sobre a área, mas que, "havendo casas em situações de risco em áreas de propriedade do estado, o ITERJ, em parceria com outros órgãos das esferas federal, estadual e municipal, buscará uma solução harmônica e integrada".
Em relação à regularização fundiária feita pelo município de Petrópolis, 60 famílias receberam documentos da prefeitura nos últimos dez anos. De acordo com a gestão municipal, os títulos de propriedade foram entregues em 2021 aos residentes do condomínio Sérgio Fadel, no bairro Samambaia, construído pela prefeitura para desabrigados pelas chuvas de 1988. Os moradores viviam no local desde 1995, mas a titulação de propriedade das residências ainda não havia sido efetuada.
Morro da Oficina
Em outra área de risco, no Morro da Oficina, no Alto da Serra, onde morreram duas pessoas na chuva deste domingo, a Prefeitura de Petrópolis chegou a iniciar um processo de regularização fundiária. A localidade foi a mais afetada na tragédia do mês passado, com dezenas de mortes. Os títulos de propriedade não chegaram a ser entregues por lá, já que o processo foi interrompido em 2018.
A prefeitura não explicou o que motivou a paralisação. Em nota, disse que "na gestão iniciada em 2017, o processo não avançou e, por conta disso, o terreno foi devolvido à Secretaria de Patrimônio da União (SPU) em 2018, paralisando os trabalhos". A regularização havia sido autorizada pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, em dezembro de 2016, com a transferência do terreno para o município. A área pertencia à antiga Rede Ferroviária do Brasil, que mantinha ao pé do morro uma oficina, desativada junto com a linha de trem, em 1964. As famílias dos ferroviários que atuavam na oficina e nas operações do trem vivem no lugar há mais de 60 anos.
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