"Olavista", "negacionista", "anticiência" e "bolsonarista raiz" são algumas das credenciais citadas por pessoas da área da saúde para caracterizar o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, Hélio Angotti Neto. O médico chegou a uma das secretarias mais importantes da pasta durante a gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello, após atuar como subordinado de Mayra Pinheiro, conhecida como "Capitã Cloroquina", na Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES). Desde então, é conhecido internamente por tentar promover medicamentos contra Covid-19 cuja ineficácia já foi comprovada, caso da cloroquina; ou cujas evidências ainda não são suficientes para indicar o uso contra o coronavírus, como a proxalutamida. Seu trabalho na pasta o levou a ser convocado pela CPI da Covid, mas a data do depoimento ainda não foi marcada.
Enquanto isso, medidas comprovadamente eficazes como vacinação e uso de máscara são alvo do descrédito do médico, que não é conhecido no ambiente da pesquisa científica. Em uma reunião do Comitê Operativo de Emergência (COE) no ano passado, Angotti gerou constrangimento ao chegar levando pelo braço consultores contratados, entre eles Ricardo Zimmerman (apontado pela CPI da Covid-19 como um dos membros do "Gabinete Paralelo" do Ministério), para apresentar um estudo dinamarquês para contestar a eficácia do uso de máscaras na prevenção ao coronavírus.
A pesquisa, feita quando a Dinamarca registrava índices baixos de transmissão, segundo técnicos, não se adequaria ao contexto brasileiro e em um momento de altos números de casos e mortes no país se colocava como uma discussão descabida. Diante da gravidade do tema, membros do COE optaram por não registrar especificamente a participação de Angotti e seus consultores em ata da reunião, a fim de "não fragilizar a imagem institucional do Ministério da Saúde".
Um mistério que paira na pasta é o que segura Angotti no cargo, uma vez que o secretário chegou a se preparar para sair quando o ministro Marcelo Queiroga assumiu o cargo. Um das hipóteses apontadas nos bastidores é de que Angotti tenha conquistado a simpatia dos filhos do presidente Bolsonaro por sua postura negacionista. Nesse sentido, a viagem de Angotti para Israel, em março, na comitiva para avaliação do spray nasal foi um dos elementos a auxiliar nessa aproximação. O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, também integrou o grupo. Fontes afirmam ainda que por ser ligado a Mayra Pinheiro, o secretário acabou sendo blindado pela popularidade da colega junto às bases bolsonaristas. Em abril, Angotti chegou a participar de uma live ao lado do presidente Jair Bolsonaro na qual fala sobre a proxalutamida e classifica a droga como "promissora".
O secretário se viu fragilizado, no entanto, com a nomeação da médica Alessandra de Sá Earp Siqueira para o Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit) . Próxima de Queiroga e pró-ciência, a médica acabou tendo mais liberdade no departamento, que é um dos principais da pasta. O Decit é responsável, entre outros pontos, pela realização de pesquisas científicas e por promover cooperação técnica entre estados e municípios. O departamento havia se tornado alvo do olavista por sua ex-diretora Camile Sachetti defender condutas pautadas na ciência. Ela acabou sendo exonerada em abril.
Segundo relatos, o ex-ministro Eduardo Pazuello chegou a se irritar com a defesa constante feita por Angotti de medicamentos com eficácia questionada. Pazuello teria repreendido o secretário e afirmado que a pauta deveria ser "vacina". O clima entre eles teria azedado de vez, em fevereiro, quando Angotti defendeu a publicação de uma nota sobre o uso de medicamentos do chamado "kit covid" no combate à doença e foi impedido veiculá-la por Pazuello. Diante da proibição, Angotti teria vazado a nota entre bolsonaristas, para que o documento chegasse ao presidente. Esse caso é mencionado por Pazuello em seu vídeo de saída, quando diz que foi boicotado por grupo de médicos dentro do ministério.
"“Esse grupo tentou empurrar uma pseudo-nota técnica que nos colocaria em extrema vulnerabilidade, querendo que aquele medicamento, a partir dali, estivesse com critérios técnicos do ministério, e ele (o medicamento) não tinha”, disse o ministro no vídeo de sua saída, em março.
Em audiência promovida em junho do ano passado pela Fundação Alexandre Gusmão (Funag), ligada ao Ministério das Relações Exteriores, Angotti criticou a imprensa, afirmou que há burrice e imbecilidade na comunidade científica, e apontou que parte da oposição à cloroquina no tratamento de Covid-19 tem razões financeiras.
— Certos insumos remuneram muito melhor do que você dar um remedinho, em que o pacotinho vai ser 50, 60 reais. Uma diária de UTI é 1.800. Então tem gente torcendo para o quanto pior, melhor. Alguns, não são todos. Quando a pessoa capitaliza a morte alheia, a tragédia alheia, isso é um um nível de desumanidade, de sociopatia assustador. E que essas pessoas tenham algum nível de respeito na nossa sociedade é também muito assustador — disse Angotti em junho de 2020.
Segundo um secretário estadual de Saúde ouvido pelo GLOBO, Angotti ainda tem poder e influência no ministério, mas nunca é a pessoa com quem eles têm interlocução para resolver problemas. Foi assim, por exemplo, nas crises provocadas pela falta de oxigênio e dos remédios do kit intubação ocorridas este ano, em que outros integrantes da pasta tomaram a frente nas conversas com os estados e municípios.
Tanto a crise do oxigênio como a dos remédios do kit intubação, além da defesa da cloroquina e outras questões, tornaram Angotti alvo da CPI da Covid. O desabastecimento de oxigênio no Amazonas no começo do ano levou a comissão a aprovar dois requerimentos de convocação, um deles apresentado por pelo senador Alessandro Veiria (Cidadania-ES) e o outro por Humberto Costa (PT-PE) e Rogério Carvalho (PT-SE), todos de oposição. Em razão de seu trabalho à frente da secretaria, a CPI aprovou um requerimento de Alessandro pedindo a quebra do sigilo telefônico e telemático de Angotti, mas essa medida foi suspensa pelo ministro Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF).
"Verifica-se que o Secretário tem se mostrado como ator relevante no Ministério da Saúde, exercendo influência na tomada de decisões sobre a pandemia, trazendo soluções milagrosas e sem comprovação científica. De forma ainda mais gravosa, o Sr. Hélio Angotti atuou diretamente em Manaus, ao lado da Sra. Mayra Pinheiro, estimulando o chamado 'tratamento precoce' e demonstrando indícios de omissão diante do colapso da saúde no Estado amazonense", diz trecho do requerimento de quebra de sigilo.
Um decreto de maio de 2019 que aprovou a estrutura regimental do Ministério da Saúde e descreveu as atribuições de cada departamento da pasta, segundo fontes da Saúde, é um mapa da omissão de Angotti à frente da secretaria. Entre as atribuições, estão a formulação de políticas relativas ao Complexo Industrial de Saúde, que seriam fundamentais para garantir insumos ao país, principalmente durante a pandemia. Outra função da pasta seria viabilizar cooperação técnica com estados e municípios, além de implementar políticas de fomento à pesquisa, desenvolvimento e inovação na área.
— O que ele fez durante a pandemia relacionado às funções estabelecidas pelo decreto? A única coisa com a qual se importava era a falta de cloroquina. Para ele, a Fiocruz é comunista e o (Instituto) Butantan é do (governador de São Paulo, João) Doria. Ele tem um perfil discreto, elegante, se comunica bem. Essa foi uma das coisas que acabou conquistando Queiroga. Ele representa muito bem — disse ao GLOBO um dos servidores da pasta, que preferiu não ser identificado.
Pelo cargo que ocupa, Angotti também é responsável pela decisão final de publicar ou não os documentos aprovados pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). E, nesse papel, ele tomou medidas que retardaram a publicação de diretrizes contrárias ao uso de remédios como a cloroquina e a hidroxicloroquina no tratamento de pacientes hospitalizados com Covid-19.
O documento foi aprovado em junho deste ano pela Conitec após passar por consulta pública e estava pronto para ser publicado. Mas Angotti decidiu realizar uma audiência pública, que ocorreu em 8 de julho. O que foi discutido na reunião será levado em conta por ele, que, até agora, ainda não tomou uma decisão sobre a publicação. E, segundo o Ministério da Saúde, mesmo depois de isso ocorrer, as diretrizes poderão ser atualizadas conforme surjam novas evidências.
Apesar de o documento ser contrário ao uso de cloroquina, hidroxicloroquina e outros remédios, ele se limita a casos de pacientes hospitalizados. A utilização desses medicamentos no tratamento precoce, ou seja, no começo da doença, antes da hospitalização, ainda não foi debatida pela Conitec. A própria Mayra Pinheiro, em depoimento à CPI da Covid, disse que já há consenso contra a cloroquina em pacientes hospitalizados, mas insistiu na defesa do seu uso o tratamento precoce.
O papel de Angotti na Conitec levou a CPI a aprovar um terceiro requerimento de convocação, apresentado pelo senador governista Marcos do Val (Podemos-ES).
O GLOBO solicitou diretamente a Angotti uma entrevista, mas o secretário não respondeu. A reportagem fez o mesmo pedido por meio da assessoria do Ministério da Saúde, mas também não obteve resposta.