Nascida e criada em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, um dos redutos da boêmia carioca, a bibliotecária Rosilene Gomes de Carvalho, de 52 anos, sempre foi apaixonada por samba e carnaval. Solteira e mãe de dois pets, para completar a renda, desde o começo do ano ela trabalha em um bar temático — carnavalesco — ao lado da praça Niterói, no Maracanã, como atendente. Ela diz que, no último sábado, passou pelos piores momentos de sua vida, quando a professora Ana Paula de Castro Batalha, que era atendida por ela, proferiu palavras racistas , que foram gravadas e presenciadas por funcionários do estabelecimento e clientes. O caso de injúria racial foi parar na delegacia, como publicou o colunista Ancelmo Gois.
— Aquele foi um dia normal, tudo muito tranquilo. As pessoas estavam muito felizes, inclusive com bolos. O clima estava muito leve, linear e tudo fluindo. Tudo muito perfeito. Pouco antes da meia-noite, ela chegou acompanhada de um rapaz. Ela pediu um drinque para uma amiga, outra atendente. Ficou na mesa e olhou com desdém e perguntou se eu trabalhava aqui. Disse que sim e fez uma reclamação do atendimento e pediu uma cerveja e água — lembra Rosilene.
Segundo a bibliotecária, em seguida Ana Paula pediu que a água fosse aberta na mesa, já que ela temia que Rosilene cuspisse no líquido .
— Ela disse: 'Eu quero que a água venha fechada, pois eu tenho medo que você cuspa nela'. Foi com essas palavras que ela se referiu. Na hora eu senti um impacto, claro. Busquei a água, pensei, vou ter problemas e comentei com meu patrão sobre o acontecido, para ele ficar ciente caso viesse acontecer alguma coisa. Ele pediu pra eu evitar e ficar na retaguarda — diz a garçonete, que lembra que é procedimento do bar só abrir água na mesa.
De acordo com Rosilene, pouco depois de 0h30 todos os clientes foram informados do fechamento do estacionamento . No momento de fechar a conta, a atendente diz que entregou a de outro cliente, no valor de R$ 264, para Ana Paula, que havia consumido R$ 84. Rosilene então voltou à mesa ao perceber a troca.
— Quando eu percebi o equívoco, fui até ela. Nesse trajeto, ela já veio gritando que eu era uma negra safada, suja, ladra e que queríamos roubá-la . Ela me atacava o tempo todo e dizia que não pagaria a conta. Eu pedi que ela tivesse calma. Até o balcão, ela estava muito alterada e as pessoas começaram a se revoltar contra ela — lembra a bibliotecária.
Em determinado momento, outros clientes que tentaram intervir também foram agredidos verbalmente . Um dos donos do bar, o empresário Vladimir Alexandre da Silva, de 46 anos, também diz ter sido insultado no momento que tentava conversar com a cliente.
— Foi a primeira vez que uma situação dessa aconteceu no nosso estabelecimento. Eu perguntei a ela se eu poderia ajudar e disse que eu era um baixinho de merda e voltou contra a Rose (como é conhecida). Falamos com ela que houve um equívoco, mas que tudo iria ser resolvido. Ela vira e chama uma outra cliente de gorda e negra e a moça ficou extremamente revoltada e quase partiu para as vias de fato. Chamei a polícia e disse que ela teria que responder por seus atos — lembra Vladimir.
Em um vídeo gravado por uma outra cliente do bar, a professora Ana Paula assume os xingamentos. “Referi como negra, eu assumo o que faço. Eu falei, eu assumo. Ela me chamou de branca azeda e eu falei que ela era negra. Assumo. Tenho doutorado ".
A enfermeira Laura Costa da Silva, de 36 anos, comemorava o aniversário no local. Moradora de Vila Isabel, a profissional de saúde diz que a noite estava agradável até o ataque da professora. Laura foi uma das vítimas e está processando Ana.
— Foi uma noite agradabilíssima, comemoração do meu aniversário em um bar que eu gosto muito. Eu cheguei por volta das 19h, mas o ocorrido aconteceu depois de meia-noite. Eu frequento o bar porque é aconchegante, gosto de carnaval e me representa. Foi uma agressão com a Rose e aquilo acabou indignando a todos. Desde o momento que a gente vê uma agressão e se omite, somos tão conivente quanto o agressor — afirma Laura, que completa:
— Aquilo me indignou e fui perguntar porque ela estava falando aquilo e ela me mandou calar a boca. Ela me chamou de negra, sapatão e outros xingamentos . Eu até pensei em descontrolar com essa senhora, mas ao mesmo tempo eu penso que não devemos pagar na mesma moeda. Não é com agressão que vamos construir um mundo melhor.
Segundo Laura, mesmo presa, Ana Paula continuou atacando quem estava no local.
— No momento que ela foi conduzida para a delegacia, ela levantou a roupa para o policial no meio da rua. Ela estava completamente descontrolada. Durante todo o tempo na delegacia ela falava que tinha contatos . Eu prestei queixa contra ela e vou processa-lá porque esse tipo de coisa não pode acontecer. As pessoas precisam saber que racismo é crime — diz a enfermeira.
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O bar Baródromo se manifestou nas redes sociais e afirmou que "diante do ocorrido, teve de conter a fúria das pessoas que estavam lá, chamaram a polícia e foram para a delegacia". Disse ainda que lamenta pelos funcionários e clientes que passaram pela situação. E se colocou à disposição para acompanhar o processo.
Além de Rosilene, outra funcionária e uma cliente registraram o caso na 20ª DP (Vila Isabel).
Segundo a Polícia Civil, Ana Paula foi presa em flagrante por injúria racial com pena de até três anos de cadeia . Na 19ª DP (Tijuca) ela se recusou a prestar esclarecimentos e disse que só falaria em juízo.
Ana Paula pagou fiança no valor de R$ 2.200 e vai responder em liberdade . O caso foi encaminhado para o Tribunal de Justiça do Rio e foi designado para a 5ª Vara Criminal.
Na manhã desta terça, em conversa com O GLOBO, Rosilene afirma que esse tipo de agressão tem aumentado nos últimos dias. Ela afirma que as pessoas estão sendo legitimadas por atos presidenciais .
— Isso que aconteceu comigo não vai parar. Temos um governo, um presidente, que legitima, respalda esse tipo de agressão. É inadmissível uma pessoa em uma delegacia esbravejar que é branca e a outra é negra e que nada vai acontecer contra ela. É preciso que essas pessoas sejam punidas severamente. Há algum tempo as pessoas tinham vergonha de ser racistas, preconceituosas, homofóbicas e etc. Hoje, fazem questão de expressar esses sentimentos — destaca Rosilene.
O GLOBO tentou falar com Ana Paula pelo telefone que está no boletim de ocorrência. A ligação não foi completada. A reportagem tenta contato com a defesa da professora.
Diferença entre racismo e injúria racial no código penal
A Lei de Racismo , de 1989, compreende "os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". O crime ocorre quando há uma discriminação generalizada contra um coletivo de pessoas. Exemplo disso seria impedir um grupo de acessar um local em decorrência da sua raça, etnia ou religião.
O autor de crime de racismo pode ter uma punição de um a cinco anos de prisão. Trata-se de crime inafiançável e não prescreve, ou seja, quem está sendo julgado não pode pagar fiança; e para a vítima, não há prazo para denunciar.
Já a injúria racial consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem, de modo a atacar a dignidade de alguém de forma individual. Um exemplo de injúria racial é xingar um negro de forma pejorativa utilizando uma palavra relacionada à raça.
O advogado Carlos André Franco Marques Viana explica:
— Quando chega na delegacia um caso de preconceito racial, o primeiro passo que o delegado tem que identificar e entender da vítima o que evidentemente aconteceu. Normalmente se qualifica como injúria racial, naquela hipótese, onde um determinado agente ou pessoal, de forma preconceituosa e injuriosa, de forma ofensiva, profere xingamento de cunho racista à vítima. Nessa situação, considerando que existe um direcionamento exclusivo a um determinado agente ou pessoal, é o que a lei entende como injúria racial. Está previsto no código penal, artigo 140, parágrafo III e tem a pena prevista de um a três anos. Nessa modalidade de crime, existem várias situações na qual o flagrante dessa pessoa pode ser lavrado, como o pagamento de fiança. Já o crime de racismo é o que chamamos de gênero. Você ataca a toda uma coletividade, toda uma raça. Com base nesse sentido, entendemos que é um crime que afeta todo um grupo. Imaginemos um político durante uma entrevista proferir expressões racistas, injuriosas para toda uma coletividade: é um crime e é punível, imprescritível e inafiançável.