A professora Laísa Railane da Silva, 23 anos, vive na aldeia Pankararú Opará, no município de Jatobá, sertão de Pernambuco. A área às margens do rio São Francisco há séculos é ocupada pelos antepassados da educadora e de outras 21 famílias que ainda moram no território. Embora esteja entre os grupos mais vulneráveis à Covid-19 e seja reconhecidamente dona da terra, essa população indígena não está incluída entre os grupos prioritários para receber a vacina contra o novo coronavírus.
“Em nossa aldeia conseguimos seguir todos os protocolos de prevenção ao coronavírus e não temos registros de casos, mas dou aula em outro território. Lá por ser demarcado todos os indígenas maiores de 18 anos foram imunizados, inclusive os outros professores, menos eu. Tenho medo de trazer a doença para casa e de perder o emprego caso exijam minha carteira de vacinação e vejam que não fui imunizada contra a Covid-19”, conta Laísa.
Assim como com Laísa e seus parentes Pankararú Opará, o mesmo ocorre com cerca de 15 mil indígenas de outros sete territórios no estado, segundo dados do Distrito Sanitário Especial Indígena Pernambuco (Dsei). Por ainda não terem a terra demarcada, nenhum está sendo imunizado contra a Covid-19 nessa primeira fase, onde o Ministério da Saúde espera que pouco mais de 26,5 mil indígenas sejam vacinados em Pernambuco.
No estado, as terras que ainda estão em processo de titularização, de acordo com o Sistema Indigenista de Informações são: Atikum; Ilhas da Varge, Caxoí e Cana Brava (Tuxi); Pankará da Serra do Arapuá; Pipipã; Serrote dos Campos (Pankará) e Truká. Essas áreas abrangem as cidades de Belém de São Francisco, Carnaubeira da Penha, Mirandiba, Salgueiro, Floresta, Itacuruba e Cabrobó.
Os povos com territórios homologados são: Pankararu; Fulni-ô; Truká; Kambiwá; Kapinawá; Tuxá; e Xukuru.
Ao seguir o Plano Nacional de Imunização (PNI), que sugere a vacinação dos indígenas aldeados, ou seja, apenas aqueles que vivem em áreas homologadas pela União, o estado endossa o racismo estrutural e alimenta a segregação entre os povos originários pondo em risco o controle do coronavírus, segundo entidades indigenistas e especialistas em saúde ouvidas pela Marco Zero.
Expropriação e segregação
Privilegiar os indígenas aldeados segue um critério estabelecido na década de 1990 e institucionalizado com a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) em 2010. “O IBGE já identificava nos anos 1990 a presença de indígenas em áreas urbanas, a maioria nas periferias das cidades. Ao mesmo tempo, ao longo desses anos a visibilidade da questão indígena cresceu e, junto com ela, a retomada da identidade desses povos dentro ou fora do território”, afirma a coordenadora do Grupo Temático Saúde dos Povos Indígenas da Abrasco, Ana Lúcia Pontes.
O missionário da Regional Nordeste do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Angelo Bueno explica que os indígenas não aldeados são empurrados para o Sistema Único de Saúde (SUS), serviço que nem sempre é preparado para lidar com as especificidades dessa população.
“O estado precisa levar em consideração que muitas pessoas não moram nas aldeias em função do histórico de expropriação de terra e de violência. Outra situação são as aldeias demarcadas que não comportam a quantidade de pessoas e ainda há os casos dos indígenas que vivem na cidade, mas mantêm relações com a aldeia, frequentando-a regularmente para visitar a família ou participar dos rituais”, explica.
Além de defender que os indígenas não deixam de pertencer ao seu grupo étnico por estarem fora do território ou dentro de uma área ainda não reconhecida pela burocracia estatal, quem pede a inclusão desses povos entre os grupos prioritários de vacinação destaca a situação sanitária e de acesso à saúde.
Um relatório da Fiocruz publicado no início da pandemia, em abril de 2020, já revelava a condição vulnerável dos indígenas à Covid-19. Outro estudo, dessa vez da Universidade Federal de Pelotas mostrou que os indígenas têm cinco vezes mais chances de contrair o novo coronavírus do que uma pessoa não-indígena.
“A população indígena sofre com problemas sérios de segurança alimentar, falta de saneamento básico, aumento de doenças crônicas como diabetes e hipertensão e outras comorbidades. Também vem crescendo os casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) entre esse grupo, sendo uma das principais causas de mortalidade nos últimos anos”, diz Ana Lúcia Pontes, que também é pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz).
A médica salienta que entende a falta de vacinas para todos os brasileiros, mas pontua que esse é um problema que deve ser encarado pela gestão e não utilizado como desculpa para promover a fragmentação dentro do grupo étnico nem a negação da identidade indígena. Ana Lúcia lembra que os municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro fizeram a inclusão dos povos originários.
O defensor regional de direitos humanos da Defensoria Pública da União (DPU), André Carneiro Leão, destaca que, além dos estudos provarem a condição de fragilidade dos indígenas, o próprio Plano Nacional de Vacinação indica a imunização de todos independentemente de estarem ou não em terras demarcadas. Embora indique a prioridade aos aldeados.
“O fato de estarem localizadas em territórios de difícil acesso justifica, do ponto de vista operacional e logístico, a necessidade das equipes de saúde irem apenas uma vez às localidades e vacinar todos evitando que o percurso seja realizado diversas vezes”, afirma.
O defensor diz que lhe causa estranheza essa proposta de segregar os indígenas. “Aliás, o fato de haver ainda hoje terras indígenas não titularizadas mostra que o estado descumpre o dispositivo da Constituição Federal que determinava já em 1988 um prazo limite para a conclusão desse processo de demarcação. Portanto, o estado brasileiro está em atraso e agora quer prejudicar ainda mais os indígenas. Solicitamos que as comunidades que não foram vacinadas nos encaminhem essas informações para que possamos cobrar do poder público”, afirma.
No âmbito do Judiciário, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entrou com pedido de medida cautelar, em caráter liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), em janeiro, para garantir a imunização de todos os indígenas no país, independente do lugar onde residem. A ação faz parte da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 709, que tem o ministro Luís Roberto Barroso como relator.
Indígenas no Recife
Os indígenas que residem no Recife também estão buscando garantir o direito à vacinação contra o novo coronavírus. No início do mês, a Associação Indígena em Contexto Urbano Karaxuwanassu (Assicuka) protocolou um ofício na Secretaria de Saúde da cidade. No documento endereçado à titular da pasta, Luciana Albuquerque, a entidade apresenta um levantamento independente que mostra uma população indígena de quase 100 pessoas vivendo na capital.
“Nossa urgência é mostrar que existimos por mais difícil que seja manter nossa cultura, nossas tradições, nossos saberes e conhecimentos. Somos indígenas e temos direitos. Nós já sofremos esse êxodo de sair de nossas comunidades porque é muito difícil sobreviver sem emprego, na cidade a gente acaba indo para a periferia e sofrendo mais um processo de etnocídio”, afirma o presidente da Assicuka, Ziel Karapotó.
A entidade ainda não obteve retorno da demanda e aguarda a abertura do diálogo com a secretária municipal de saúde. Procurada pela reportagem, a pasta não respondeu se atenderá o pedido da Assicuka.
A Marco Zero também procurou a Secretaria Estadual de Saúde, mas a assessoria não respondeu até a publicação desta matéria.