Paulo Iotti protocolou uma petição na Corte indo contra os embargos declaratórios da AGU.
Agência Brasil
Paulo Iotti protocolou uma petição na Corte indo contra os embargos declaratórios da AGU.

Um dia após a Advocacia-Geral da União (AGU) questionar ao Supremo Tribunal Federal (STF) se a decisão da Corte que permitiu a criminalização da homofobia e da transfobia, equiparando-as ao crime de racismo, atinge o princípio da "liberdade religiosa", o advogado autor da ação que levou à decisão histórica do STF, Paulo Iotti, protocolou na tarde desta quinta-feira uma petição na Corte contrária aos embargos declaratórios da AGU.

Em julgamento realizado no ano passado, os ministros equipararam a discriminação contra LGBTIs ao crime de racismo em uma ação de Iotti representando o partido Cidadania, que à época ainda se chamava Partido Popular Socialista (PPS).

Com a decisão do STF, quem ofender ou discriminar gays ou transgêneros estará sujeito a punição de um a três anos de prisão. Assim como no caso de racismo, o crime seria inafiançável e imprescritível. O questionamento da AGU foi feito por meio de embargo de declaração, pedindo esclarecimentos sobre a decisão.

O relator do caso era o ministro Celso de Mello, que se aposentou. A condução deste caso, então, deve ser direcionada ao seu substituto. O desembargador Kassio Marques foi indicado e será sabatinado na próxima semana. Ele pode rejeitar o embargo, ou levar o tema para debate em plenário. Embora o Supremo tenha julgado o caso em junho de 2019, a decisão só foi publicada no último dia 6, e o advogado-geral da União, José Levi, protocolou o embargo após cinco dias úteis.

A AGU quer saber, por exemplo, se a decisão atinge a liberdade religiosa. No recurso, justifica que " as doutrinas religiosas não raro estabelecem sanções para comportamentos considerados criticamente incompatíveis com os dogmas estabelecidos, prevendo consequências que podem chegar à exclusão da congregação". A Frente Parlamentar Mista da Família e Apoioà Vida do Congresso também protocolou um embargo de declaração questionando o Supremo.

Para Iotti, os argumentos da AGU sugerem uma "carta branca" para a discriminação.

"Vemos a AGU, um ógão de Estado, e não de governo, pedir o direito de discriminar com base na liberdade religiosa. O embargo expressamente cita uma decisão da Suprema Corte americana que permitiu que um padeiro não atendesse um casal gay (no estado do Colorado, em 2012) , uma decisão horrível no qual o próprio tribunal deixou claro que não se estava fazendo um balanceamento definitivo da liberdade religiosa", lembra Iotti. "Para mim, a AGU quer uma carta em branco. Estou pedindo condenação dela por litigância de má fé".

Iotti sustenta na petição que a posição da Advocacia-Geral da União abre espaço para a discriminação de "qualquer minoria ou grupo vulnerável", a exemplo do que já aconteceu no passado, "no passado,(autoproclamados) cristãos discriminavam pessoas negras alegando“liberdade religiosa”, por uma pretensa interpretação da Bíblia".

"É a mesma tese. Os mesmos argumentos contra casamento homoafetivo eram usados para o casamento interracial, que existia nos EUA até os anos 50. Para o professor Levi ser coerente, precisa defender que fundamentalistas podem discriminar pesosas negras no atendimento público, o que é obviamente absurdo. É um imperativo de coerência. Por que pode discriminar LGBTI e não mulheres, judeus, idosos? É uma gravíssima incoerência por conveniência. Não consigo conceber alguém do gabarito do José Levi não conhecer essa discussão, que é muito forte nos EUA", afirma Iotti.

O advogado afirma que os argumentos apresentados pela AGU e pela Frente Parlamentar Mista da Família e Apoioà Vida não são condizentes com os critérios de embargos de declaração. Iotti afirma que tais manifestações só cabem se a decisão do Supremo for omissa sobre um tema que deveria ter tratado, obscura, contraditória ou pautada por um erro material. Na petição protocolada nesta tarde no STF, ele enumera diversos votos de ministros da Corte que contrariam a hipótese de omissão.

"No jargão processual, esses recursos são manifestamente protelatórios, ou seja, estão enrolando. Não se pode fazer esses embargos declaratórios por mera divergência sobre o mérito da decisão", afirma o advogado. "É uma decisão claramente política, é jogar para a plateia. Você não pode seriamente dizer que a decisão não tratou dos limites da liberdade religiosa e de expressão. É deplorável um jurista do peso do José Levi se dignar a defender o direito de discriminar e encampar uma petição tão absurda e teratológica".

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Outro ponto sustentado pela AGU é a liberdade científica, artística ou profissional – seja em meios acadêmicos, midiáticos ou profissionais – de toda e qualquer ponderação acerca dos modos de exercício da sexualidade. Para o órgão, " é necessário assegurar liberdade para a consideração de morais sexuais alternativas, sem receio de que tais manifestações sejam entendidas como incitação à discriminação".

O recurso também aborda a legitimidade do controle do acesso a espaços de convivência pública, como banheiros, vestiário e o transporte público sob imperativo de reserva de intimidade de frequentadores considerados vulneráveis.

"O acesso aos espaços públicos pode ser organizado a partir do critério fisio-biológico de gênero, e não da identificação social do usuário, tendo em vista a necessidade de proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade", escreveu o advogado-geral da União, José Levi.

Na petição protocolada no STF, Iotti afirma que o trecho visa explicitamente vetar direitos a pessoas trans.

"Sem tergiversar, quer-se proibir que mulherestransexuais usem banheiros femininos e, se presas, fiquem em presídiosfemininos, tanto que, na página seguinte, faz referência aos processos emtrâmite nesta Suprema Corte sobre tais temas. A pergunta que a AGU nãoresponde é a seguinte: em que a presença de mulheres transexuais nobanheiro feminino prejudicaria a intimidade ou a segurança demulheres cisgênero?", questiona o advogado.

O texto do embargo da AGU cita ainda que a convicção filosófica ou política "configuram o âmbito de proteção das liberdades de consciência e crença", que podem fundamentar, ao menos em tese, hipóteses a serem excluídas da lei.

“Ninguém duvida de que a tolerância seja um dos principais pilares normativos da Constituição de 1988, e que a decisão ora embargada (criminalização da homofobia) faz uma contundente e devida defesa desse tônus libertário do texto Constitucional. Mas, lógico, isso não pode ser feito às custas de outras liberdades relevantes. Desde que não se converta em adjetivação depreciativa, voltada para a desqualificação injuriosa, é perfeitamente possível que a moralidade sexual seja avaliada nos diferentes ambientes de expressão intelectual”.

Iotti vê o argumento da AGU como um reflexo de um processo global de se aproveitar de conceitos universais, como a tolerância, para justificar a opressão de minorias.

"É um fenômeno mundial usar a linguagem dos direitos humanos contra direitos humanos. Isso até demorou para isso chegar no Brasil, pois fazem toda hora nos EUA, onde (alguns setores) querem liberdade religiosa para tudo. Há uma fala famosa do movimento LGBTI, que diz que a liberdade de expressão não é liberdade de opressão", lembra.

A AGU justifica que "é importante que se esclareça, como tese de julgamento, que não só a liberdade religiosa, mas a própria liberdade de expressão, considerada genericamente (englobando a manifestação artística, científica ou profissional), respalda a possiblidade de manifestação não aviltante a propósito da moralidade sexual."

O advogado afirma que a AGU não fundamenta a questão:

"A AGU incorre em inépcia profissional ao argumentar que há omissão na decisão do Supremo onde não há. Além disso, ela pede que o STF explique nos mínimos detalhes o que é homofotransfobia e o que não é, mas o Levi não explica no detalhe o que é liberdade religiosa e o que não é. De que forma a intimidade deve justificar a retirada de LGBTIs do espaço público? Ele não explica. Em que contexto ele tem medo que a liberdade religiosa não seja desrespeitada? Não fala. O Judiciário não é orgão de consulta".

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