O relógio marcava quase 16h quando o telefone de Lucilene da Silva Bandeira tocou na tarde desta segunda-feira (3). Do outro lado da linha, o marido Alexandre Dias Bandeira ligava de um celular emprestado e informava que havia acabado de sair do presídio e enfrentaria um longo percurso – teria que pegar quatro ônibus – até chegar em casa, exatos 68 dias depois de ser preso por policiais da Delegacia de Capturas de Pernambuco.
Quando a reportagem da Marco Zero Conteúdo chegou na casa de Lucilene, na Avenida Canal, em Sítio Novo, Olinda, ela recebia no portão uma sobrinha e o seu filho de 4 anos. Vieram fazer companhia à tia até que Alexandre chegasse. Lucilene prometeu ficar calma e que caminharia tranquilamente até a porta para que a equipe da MZ Conteúdo pudesse filmar o momento do encontro do casal. Às 18h em ponto, mal o marido havia encostado no portão, Lucilene saltou da cadeira. Corremos todos para captar o primeiro abraço e beijo do reencontro.
Ainda no terraço e de pé, Alexandre se disse devastado pelo que viveu em pouco mais de dois meses no Centro de Observação e Triagem Everardo Luna – Cotel, localizado em Abreu e Lima, Região Metropolitana do Recife. “Só lá dentro para você sentir o que é aquilo. Dormir num chão puro feito um cachorro, sem cama. Lá você é tratado como um cachorro. O meu cachorro aqui em casa é mais bem tratado do que a gente lá dentro”, desabafou. Numa mão ele carregava uma bíblia e, na outra, o documento que recebeu na saída do presídio, datado de sexta (31), determinando sua imediata soltura.
Feliz por estar de volta a sua casa, Alexandre não parava de repetir as palavras que ouviu de um diretor do Cotel, pouco antes de ser libertado. “Me disseram que estavam me soltando, mas que minha situação não estava resolvida e que eu cuidasse de provar a minha inocência porque senão poderia voltar a ser preso. Voltar para o Cotel”, insistia, mostrando o trecho de advertência marcado pelo diretor no documento de soltura que diz que “o acusado deverá se apresentar à autoridade processante toda vez que for intimado e não pode mudar de residência ou ausentar-se da comarca por mais de oito dias”.
“A verdade é que a Justiça não quer lhe soltar. Ela existe e funciona para lhe prender. Aprendi no presídio que a Justiça é injusta”, desabafou.
Ele sabe exatamente o que está falando. Foi preso por um crime praticado há 19 anos no Mato Grosso do Sul. Estado no qual, garante, nunca esteve. “Nasci no Rio de Janeiro e vim morar adolescente em Pernambuco e vivi aqui toda a minha vida até agora, quando já estou começando a ficar velho, não é?”, ri, mas se mostra indignado com o que está vivendo. “É revoltante passar pelo que passei no presídio sem ter culpa nenhuma”.
Tudo começou há quase duas décadas quando Policiais Rodoviários Federais pararam um carro no município de Bataguassu – a 335 quilômetros de Campo Grande – transportando quase 80 quilos de maconha. O condutor apresentou documento de identidade e de propriedade do veículo com os dados de Alexandre Dias Bandeira. Mas a foto da identidade é completamente distinta. De outra pessoa. Preso em flagrante e condenado a 5 anos de prisão por tráfico de drogas, o homem fugiu da cadeia pública 5 meses depois de ser detido.
Um ano antes, os documentos de Alexandre haviam sido roubados, em Olinda. Ele só soube do processo no Mato Grosso do Sul em 2013 quando tentou descobrir porque seu título de eleitor havia sido cancelado. “É muito difícil você provar sua inocência à Justiça quando não tem recursos, falo de recursos financeiros. Se é pobre não tem como bancar advogado e garantir seus direitos”, critica.
“Eu procurei o Ministério Público aqui em Olinda, também procurei o Ministério Público do Estado e até o Ministério Público Federal, mas não obtive apoio nenhum. Me diziam que a causa era em outro estado, exigia carta precatória, era muito custosa. Então eu me senti injustiçado pela própria Justiça. Eu quis a ajuda deles e todos viraram as costas para mim e eu não tive como comprovar minha inocência. Me vi só, sem os meios e os apoios para me defender”, conta.
A rotina no presídio
Não foi fácil se adaptar à rotina do Cotel onde o café da manhã, com pão e manteiga, ás vezes angu, é servido às 4h da madrugada. “Se quer comer tem que estar de pé, acordado, às 4h”.
Você viu?
Alexandre dá as dimensões do drama humano vivido pelos presos no Cotel: são três pavilhões com 56 celas cada um e 1.200 homens aproximadamente por pavilhão, conta. Em cada cela, quatro camas de cimento e espaço para mais seis pessoas dormirem no chão. Considerando a superlotação, os que não conseguem se alojar à noite nas celas se espalham pelo chão dos corredores e do pátio coberto. Nos dois meses de cadeia, Alexandre ficou no pavilhão C, dos condenados primários.
Às 6h é realizado o culto evangelístico e às 7h todos os presos precisam, literalmente, se espremer nas suas celas de origem enquanto as áreas externas são limpas. O processo dura em torno de 30 minutos até que sejam liberados. O almoço é servido às 11h e a janta às 17h. Os presos têm acesso a uma área de quadra e uma academia. Às 23h vem o toque de recolher. Todas as luzes se apagam. Os próprios presos fazem rondas noturnas em grupo à noite para garantir a “normalidade”. “Não existe isso de prato, cada um come com o que pode. Faz as vezes a mão de prato para se alimentar. Só quem está lá dentro sabe como aquilo funciona”, relata.
Apesar de todo o sofrimento, Alexandre disse que também sai com algumas boas lembranças da cadeia. “Embora o sistema carcerário seja muito severo, eu tive lá boas amizades. Tem gente boa lá dentro, sabe? Não existem só feras. São seres humanos que estão pagando pelos seus crimes. Seres humanos. Muitos fizeram coisas erradas, se arrependem e querem sair”. O problema é o tratamento que recebem, insiste. “O que faz você ficar revoltado é o sistema, a maneira como você é tratado. E tem muita gente injustiçado vivendo ali”.
O caso de Alexandre é emblemático de como polícia e Justiça funcionam no Brasil em favor de uma política de encarceramento em massa baseada em flagrantes e pouca investigação, muita burocracia e erros judiciais. O homem preso no Mato Grosso do Sul há 19 anos não teve suas impressões digitais colhidas, nem foi fotografado pelas autoridades policiais ou judiciais. “Quando ele fugiu, ficou livre da Justiça. Sem registro. E eu, que não fiz nada, fiquei marginalizado”, reflete Alexandre.
Durante os cinco meses em que o homem ficou detido na cadeia pública de Bataguassu, Alexandre trabalhava como motorista – de carteira assinada – em um armazém de construções, em Olinda.
Os erros não param por aí. O mandado que originou a prisão de Alexandre, em 27 de maio deste ano, no Recife, não poderia ter sido executado. Sentença de 2018 anulou o mandado ao definir a prescrição do crime e a imputabilidade do condenado. Ainda assim, a Delegacia de Capturas de Pernambuco recebeu email do próprio Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, no dia 26 de maio, com o envio do mandado invalidado e orientando pela prisão imediata.
Sua liberdade, agora, nasceu de um pedido de habeas corpus feito pelo advogado sul matogrossense Hallysson Rodrigo Silva e Souza, que ficou emocionado ao ler o depoimento de Lucilene indignada com a prisão do marido. “Só tenho a agradecer a ele, que nem me conhece. Vejo que é um homem íntegro. Alguém que acredita na justiça. Só Deus poderá recompensá-lo”.
“Quero meu emprego de volta”
Mais calmo após a entrevista, Alexandre soube que Lucilene havia preparado carne com inhame para a janta. Deu um bom sorriso. Ficou feliz. “A comida e a dormida é o mais complicado no presídio. Muito bom voltar pra casa. Dormir na minha cama de novo”. Mas o descanso não está nos seus planos. Nesta terça-feira (2), vai procurar o patrão para voltar ao emprego na Construtora Ingazeira, onde está registrado na função de servente de obra. “Eu fui preso lá, no meu local de serviço, quando faltavam apenas dois dias para completar dois anos de carteira assinada. Espero poder retornar ao trabalho. Quero meu emprego de volta”.
Alexandre e Lucilene também devem se reunir nos próximos dias com as advogadas do Observatório dos Direitos Humanos, Thaísi Bauer e Luisa Lins, para discutirem a ação de revisão criminal que será encaminhada ao Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul para limpar de uma vez por todas o nome do trabalhador.
Na despedida, a reportagem lembra a Alexandre as primeiras entrevistas que realizou na comunidade em meados de julho quando saiu a primeira matéria sobre o caso. Nos impressionou o quanto os vizinhos o apoiavam e demonstravam afeto por ele. “Olha, pra falar a verdade, eu não esperava tudo isso. Fico pensando… Acho que é porque eu sou o tipo de pessoa que o que é ruim pra mim eu não quero dar ao outro. Eu gosto sempre de ver o mundo pelo lado do outro. Sentir o que as pessoas sentem para conhecer a realidade delas. Deve ser isso. Aliás, foi assim até no presídio. Quando eu tava saindo veio muita gente me abraçar, dar um xêro. E o mensageiro me apressando pra eu não perder a hora de saída, já pensou?”.