O Brasil não será mais o mesmo depois do ano de 2020. Em menos de cinco meses mais de 100 mil pessoas morreram em decorrência da Covid-19.
Após a primeira morte oficial pela doença, no dia 12 de março, as estatísticas foram se acumulando e a cada hora, mais famílias precisaram dizer adeus de forma inesperada. Sem velórios e com enterros de apenas dez minutos, as despedidas em isolamento social vão deixar feridas abertas.
De acordo com a advogada e bioeticista Luciana Dadalto, especialista em direito da saúde, a morte de alguém pode enlutar até dez pessoas próximas a quem faleceu. Quase um milhão de pessoas atravessando, ao mesmo tempo, um intenso processo de perda no país já seria um fenômeno alarmante, mas a Covid-19 vai além: desta vez os ritos, o suporte social e até mesmo a validade de cada morte são negados.
“Há uma naturalização dessas mortes que não podem ser confundidas com as mortes naturais. Eu trabalho há 12 anos com o fato de que nós somos finitos e defendo o luto como um processo natural em minhas pesquisas, mas isso não é um argumento para tratar com indiferença um mote de 100 mil mortes”, reforça Dadalto.
Sem nenhuma vacina contra o novo coronavírus (Sars-CoV-2) pronta para ser aplicada, em agosto de 2020, e com os planos de flexibilização sendo aplicados em várias cidades do Brasil, olhar para um futuro diferente, sem outras milhares de mortes pela Covid-19, é desafiador. Ao passo que o número de infectados cresce e o isolamento social diminui, o contador dos óbitos oficiais continua a aumentar.
Mais que números
"Honesto" foi a segunda característica utilizada pela professora Suzy Vieira para descrever o marido. A primeira foi "o amor da minha vida". João Almir de Souza era agente penitenciário e faleceu em maio, aos 56 anos, com um quadro grave da Covid-19. "A morte nessas condições é um atropelamento, porque vai muito além da perda natural", pontua Suzy, cujo casamento de 38 anos foi interrompido.
"Quando tudo aconteceu, o isolamento e tudo, ele estava de férias e decidiu voltar a trabalhar pois era um momento em que estariam precisando dele", relembra a professora, que destaca o comprometimento do marido com o serviço público. Entre os primeiros sintomas da Covid-19 e o óbito de João Almir, pouco mais de 20 dias se passaram, apesar do histórico de saúde em ótimas condições e das medidas de prevenção tomadas pela família.
"Depois de alguns dias na UTI ele me ligou e disse que precisaria ser entubado, porque estava piorando da doença. Aquela foi nossa última conversa", conta. A partir desse ponto, Suzy acompanhava os boletins de saúde do marido em visitas angustiantes ao hospital. "Cheguei a ficar 48 horas sem notícias, pois eles estavam sobrecarregados".
"Um dia antes de morrer ele teve uma melhora, tivemos uma esperança. E aí no dia seguinte o médico ligou e disse que o quadro dele era irreversível". Nesse momento, apesar das normas de segurança proibirem visitas aos pacientes da Covid-19, Suzy assumiu os riscos com o hospital para uma última visita ao marido. "Eu precisava ir. Me paramentei, vesti as roupas do hospital e fui vê-lo mesmo entubado. Precisava agradecer por tudo que vivemos. Precisava dizer que ele tinha minha permissão para ir em paz", desabafa.
O luto de um milhão de pessoas
A advogada Luciana Dadalto fala com preocupação sobre a naturalização de um número tão alto de vítimas e afirma que ocorreu no Brasil uma mistura de discursos políticos e dados sobre a pandemia.
“A perda é inerente ao ser humano e todos nós vamos em algum momento atravessá-la, mas existem também algumas perdas que ficam ligadas ao traumático, que deixam marcas muito dolorosas”, explica o psicólogo e professor da Universidade de São Paulo, Pablo Castanho, que coordena o grupo de apoio psicológico da universidade. O profissional destaca a impossibilidade de rituais como um dos condutores a esse trauma.
Ao relembrar a experiência de despedida do marido morto pela Covid-19, a professora Suzy Vieira descreve como “uma situação cruel”. “Não poder preparar o corpo, não poder se despedir de maneira digna. A sensação que eu tenho é que um membro foi amputado sem anestesia", diz. "Ao voltar pra casa, no dia do enterro, eu sentia que estava dentro de um pesadelo. Ainda sinto".
“Ele faleceu chegando ao hospital em meus braços"
Já a assistente social Adriana Dutra, que há três meses vive a falta do marido, Emerson Gonçalves, fala sobre os reflexos da despedida que não aconteceu como deveria. “Eu não consigo esquecer o barulho da sirene da ambulância. Minha dor, hoje, se materializa em dor física. As pessoas falam que vai passar a pandemia, que tudo vai voltar ao normal, mas quem perdeu alguém precisa se reinventar”, diz.
Para Adriana, o momento doloroso que a família atravessa deve servir de exemplo aos que “vivem alienados da realidade” e rejeitam a gravidade da doença. “Ele faleceu chegando ao hospital em meus braços. Ninguém pode imaginar o que é isso”, diz.
Além de processos que dificultam a já imensa dor do luto, Pablo destaca que o eco traumático das perdas por Covid-19 possui, ainda, uma complexa relação com o histórico de desigualdades do país.
“O trauma não só acontece quando existe uma ruptura significativa, quando um evento parece maior do que o que aquele sujeito estava preparado para lidar. Ocorre também quando o ambiente diz àquele sujeito que nada de importante aconteceu”, diz.
“Isso também está relacionado à subnotificação de números. Ao momento em que alguém ritualiza essas mortes numa praia, por exemplo, e outra pessoa vai lá e destrói. Tem formas no nosso tecido social de desmentir que houve mortes ou que a dor é significativa que são brutais, gritantes e eu diria criminosas”, destaca o psicólogo.
Recuperados da Covid-19 e as sequelas para o futuro
No início de maio deste ano, a aposentada Eliete Ribeiro, 61, sentiu muita dificuldade em respirar. Ela relembra que puxava o ar com todas as forças, mas parecia que o pulmão estava com algum peso. Sem saber da gravidade de seu quadro de saúde, o filho mais velho, Henrique Oliveira, 36, a levou em um hospital público do Recife, mas não tinha vaga para internação.
Após alguns dias de espera, o SUS disponibilizou uma vaga para Eliete em um hospital privado da capital pernambucana. O resultado do exame informava que ela tinha a Covid-19, mas por conta da demora e da incerteza de onde poderia ser internada, a respiração ficou ainda mais difícil.
Eliete foi transferida para a UTI com urgência e autorizou a sua intubação. Antes dos sedativos, comunicou a decisão aos familiares por telefone. Essa foi a última vez que ela se lembra de ter conversado com alguém.
Foram 90 dias na UTI, com diversas complicações no pulmão e nos rins. "Eu tive todos os tipos de problemas que um paciente com a Covid-19 pode ter, mas agora estou de volta, pronta para viver de novo", conta a aposentada.
Na última quarta-feira (5), Eliete recebeu alta hospitalar e apesar de seu quadro de saúde melhorar, as sequelas físicas e emocionais ainda são muitas. "Ainda não consigo andar sozinha, preciso fazer muita fisioterapia porque foram muitos dias deitada e dormindo. Foram os piores dias que passei, com toda certeza", lamenta.
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Ser um paciente “recuperado” da Covid-19 não exatamente representa estar curado ou sem sequelas. Muitas pessoas com quadros graves ou mais leves, reclamam de constante fadiga, mesmo após alta hospitalar.
É o caso do músico Felipe Mendes, 38, diagnosticado com a Covid-19 no dia 20 de maio. "Tudo indica que fui infectado por vizinhos que estavam fazendo uma festa. Eu reclamei e eles vieram ao meu portão questionar. Fui tentar conversar, e no calor do momento, não coloquei a máscara. Nessa conversa rápida, peguei o virus. Cinco dias depois, comecei a ter sintomas", explica.
Ao todo, ele ficou em quarentena por doze dias, com o tratamento feito em casa porque na época, a ajuda médica era indicada para quem estava com quadro de saúde mais grave. "Tive febre, calafrios, mas não tive grandes complicações", destaca o músico.
Antes da doença, Felipe explica que sempre se considerou muito saudável, com boa alimentação e disposição para realizar atividades físicas. "Eu nunca tive muitos problemas de saúde, mas se por um lado eu me sinto curado da Covid-19, por outro não me sinto saudável hoje", lamenta.
Mesmo após dois meses da cura, a sensação de fadiga e os danos psicológicos ainda estão presentes em sua rotina. "Sinto que não estou totalmente recuperado, estou inclusive buscando médicos para realizar exames".
Pandemia trará mudanças dentro e fora dos consultórios
E se a pandemia causa danos irrecuperáveis, também marca a história da ciência e determina novos rumos em todas as áreas da saúde. Para o médico Claudio Luiz Lottenberg, presidente do Conselho Deliberativo do Hospital Israelita Albert Einstein, a Covid-19 - cuja dimensão do impacto é marcada pelas 100 mil mortes no Brasil - deve mudar a perspectiva sobre o valor da saúde.
“As pessoas vão sair muito mais conscientes sobre autocuidado, sobre prevenção, sobre a importância de ir ao médico e fazer exames e, principalmente, cientes da importância dos investimentos na saúde, tanto para cobranças ao poder público quanto na esfera pessoal”, explica o profissional, que acrescenta que “até o início da pandemia, as pessoas achavam razoável gastar quantias absurdas em um restaurante enquanto reclamam do preço de um remédio”.
Além da priorização, Lottenberg aposta na telemedicina como parte do cotidiano, mesmo após o fim da pandemia. “Desde que haja o treinamento adequado para que profissionais se sintam seguros com essa plataforma e proteção à privacidade dos pacientes, a telemedicina é uma porta de entrada para o tratamento médico que pode facilitar o acesso à saúde de uma maneira imutável”, diz.
Outro profissional envolvido diretamente com a sobrecarga dos hospitais durante a pandemia, o médico cirurgião e professor Murilo Neves, avalia a importância da crise na saúde como um setor estratégico e reforça a falta de insumos que atingiu o mundo inteiro: “não podemos depender de importação de máquinas, medicamentos ou vacinas, pois corremos o real risco de não receber o produto prometido; ou de simplesmente ficarmos pro final da fila”.
Neves também observa a mudança de olhar sobre a profissão que, nas palavras do médico, “passou de heróis sem capa sendo aplaudidos nas sacadas dos apartamentos a vilões infectados e transmissores de vírus segregados em elevadores e transportes públicos”.
Já a psicóloga Ingrid Rosi, que atende pacientes graves nas Unidades de Terapia Intensiva do Hospital Meridional, no Espírito Santo, aposta em uma mudança profunda nas relações sociais, destacando que uma crise de saúde pública interfere em campos que vão muito além da medicina. “O que eu percebo agora é que teremos algumas sequelas emocionais em pessoas atingidas pela doença e profissionais de saúde, por exemplo, que já apresentam sinais de stress pós-traumático”, afirma.
“Apesar disso, vejo também uma nova construção da sociedade em que as pessoas valorizem muito mais o contato social, o beijo e o abraço em contextos em que não exista tanto medo de ser contaminado”, completa a profissional, que destaca a percepção dos brasileiros para a importância do contato físico na manutenção da saúde mental.
Brasil corre o risco de voltar ao mapa da fome
A pandemia trouxe à tona uma série de problemas no sistema de saúde pública do Brasil. Hospitais lotados, poucos profissionais e muita desinformação. Além da crise sanitária, em regiões com elevadas desigualdades, como é o caso do Brasil, no médio e longo prazo, os impactos socioeconômicos da Covid-19 devem aumentar as iniquidades já existentes. Diminuição na renda, no acesso a serviços básicos ou na concretização de direitos básicos.
O Programa Mundial de Alimentos (PMA), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), estima que 270 milhões de pessoas estarão em situação de crise de fome antes do fim do ano. A estatística representa um aumento de 82% em relação ao registrado em 2019, devido à pandemia.
Em um estudo inédito realizado pela Oxfam International , os pesquisadores advertem sobre o aumento da fome no planeta, à medida que o novo coronavírus lança milhões de pessoas na pobreza extrema.
Pelas estimativas da Oxfam, até o fim de 2020, entre 6,1 mil e 12,2 mil pessoas poderão morrer diariamente de fome em decorrência dos impactos socioeconômicos da pandemia. Os dados emitem um alerta global e direcionado ao Brasil, que corre o risco de voltar ao mapa da fome, depois de conseguir sair em 2014.
O órgão destaca que há países e regiões de renda média que enfrentam riscos de alta na incidência da fome. É o caso de Índia, África do Sul e Brasil, com alto número de pessoas sendo empurradas pela pandemia para situação de fome. A Oxfam destacou que até mesmo nações desenvolvidas não estão imunes.
“A pandemia está explorando e exacerbando as desigualdades, na medida em que os que estão na base da pirâmide social são os mais impactados pela perda de empregos e de renda”, informou a entidade, ao propor uma série de medidas aos governos para evitarem esse cenário de fome extrema em formação.
Além disso, apenas 47,9% do montante destinado ao auxílio emergencial às pessoas em situação de vulnerabilidade foi distribuído até início de julho. “Os riscos de disparada da fome no país são imensos quando o Estado brasileiro falha em garantir as condições mínimas de sobrevivência a todas as pessoas impactadas pela pandemia”, afirma Maitê Guato, gerente de Programas e Campanhas da Oxfam Brasil. “Não basta criar programas de proteção, o que muda a vida das pessoas é fazer os recursos chegarem na ponta.”
Maria José Menezes, integrante do Coalizão Negra por Direitos, explica que o quadro de fome no Brasil "não vai chegar porque ele já é presente no Brasil."
Ela relembra que no início da pandemia, o Brasil tinha ferramentas e conhecimento suficiente para minimizar o impacto na saúde do país. "Quando o vírus começou a circular pelas américas, a OMS já tinha conhecimento do perfil do novo coronavírus e de como ele afetaria as pessoas. Isso foi repassado aos ministérios da saúde de todos os países e a indicação era a suspensão imediata das atividades econômicas e medidas drásticas para dar condição das pessoas sobreviverem, apenas com o funcionamento de locais necessários, para que o vírus não se alastrasse pelos países", explica Maria José.
Para ela, as cem mil mortes no Brasil poderiam ter sido evitadas. "Essa tragédia que aconteceu aqui foi uma decisão política de não priorizar as vidas humanas e sim o mercado financeiro. Isso tudo faz com que o número de pessoas acometidas pela Covid-19 seja muito mais do que era esperado. São mais de mil óbitos por dia, e como num passe de mágica, você tem abertura de comércios e até de escolas", lamenta.
Ela entende que a Covid-19 potencializou os problemas já existentes na saúde pública do Brasil, nas periferias e nos mais vulneráveis socialmente. "Não tem saneamento básico para todos, a gente sabe que boa parte da população não tem água nas suas torneiras e nem banheiro. A nossa triste realidade depende de políticas públicas efetivas, que nesse governo atual, não foram prioridade", conclui.