Faltam EPI's, água e suporte: agentes falam sobre pandemia nas prisões
De acordo com agentes penitenciários, crise é tratada com descaso no país cuja população carcerária é a terceira maior do mundo
Por iG Último Segundo | - Nathallia Fonseca |
Os últimos dez dias do agente penitenciário Rômulo Alves*, de 45 anos, foram no quarto de enfermaria de um hospital em São Paulo recebendo tratamento para a Covid-19 . Entre exames e chamadas de vídeo com a família - que suprem a falta de visitas, proibidas aos pacientes da doença - Rômulo explica que sentiu os primeiros sintomas no trabalho onde, diariamente, mantém contato com cerca de 200 presos.
“Senti calafrios no meio do plantão e saí para buscar atendimento médico. No mesmo dia, como eu tinha sintomas, fiz o teste para Covid e já fui afastado”, conta o profissional, que após cinco dias de tratamento em casa precisou voltar ao hospital onde descobriu um comprometimento dos pulmões, o que demandou internação. “Eu fui o décimo nono a adoecer na corporação ”, conta Rômulo. Ele ainda não sabe se mais alguém foi infectado depois dele.
Uma situação parecida ocorreu com o casal Leandro e Clarissa*, que trabalham juntos em um centro de detenção provisória no interior paulista. Ele, que é agente penitenciário, conta ter contato direto com os quase 1.500 reeducandos da unidade. Já a esposa trabalha na portaria, por onde não deixam de passar servidores , advogados, oficiais de justiça e os demais profissionais que visitam o local.
Leandro, que esteve próximo ao primeiro servidor a apresentar sintomas, diz que os casos de Covid-19 ocorreram “em efeito cascata” em seu ambiente de trabalho. “Eu e a Clarissa fomos o segundo e terceiro casos. Comecei a sentir os sintomas em um dia e no outro já precisei ser internado. Poucos dias depois, ela também precisou ficar no hospital”, recorda o agente, que sentiu apenas febre e dor no corpo antes de descobrir, nos exames, a baixa saturação dos pulmões. “Tomei vários medicamentos e fiquei isolado no quarto. Não ligava a televisão pois só falavam em mortes por Covid”, conta.
Clarissa, que foi internada no dia 17 de maio - uma semana depois do marido -, diz que sentiu apenas uma ardência ao respirar. Apesar do sintoma discreto, porém, seu caso não era simples: o diagnóstico apontou que 25% dos pulmões da servidora estavam comprometidos e a equipe médica chegou a considerar a intubação . “Senti meu corpo gelado, coração disparou e tive muito medo do pior”, confessa. A saúde de Clarissa reagiu bem após a medicação, possibilitando a alta no dia 21 daquele mês. Assim como o marido, porém, ela precisou ser internada novamente dois dias depois, com alta definitiva apenas do final de junho.
Os sintomas severos e altos e baixos do tratamento renderam ao casal um enorme abalo psicológico que demanda, hoje, acompanhamento psiquiátrico. Para eles, a falta de suporte no trabalho contribuiu para a infecção e agravamento dos casos. “Duvidaram da veracidade dos nossos atestados e chegaram a abrir um processo apuratório para tal. Não tivemos nenhum apoio da unidade prisional ou secretaria da administração penitenciária, nem ao menos uma mensagem, absolutamente nada”, contam.
Ainda segundo o casal, os protocolos de higiene não são cumpridos como deveriam na unidade. “A água na carceragem é controlada com horários de abertura e fechamento, ou seja, dificultando a higiene tanto dos presos como dos servidores. O álcool gel era de 65% e não 70% como recomenda a OMS, além da escassez. A obrigatoriedade das máscaras na unidade começou apenas em maio, assim como a distribuição de 2 máscaras descartáveis para um plantão de quase 13 horas”, apontam.
O sistema prisional brasileiro conta com 110 mil agentes penitenciários. De acordo com um levantamento divulgado pela Fundação Getúlio Vargas, apenas um terço desses profissionais disse ter recebido equipamentos de proteção individual (EPI), como luvas e máscaras . Além disso, a pesquisa também aponta para o fato de que apenas 9,3% dos profissionais se disseram preparados para lidar com a crise.
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De acordo com levantamento realizado pelo Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional de São Paulo - SIFUSPESP , 22 funcionários foram mortos pela doença apenas no estado e 363 trabalhadores estão infectados.
Em junho, a Justiça do Trabalho concedeu liminar garantindo medidas de proteção de servidores e terceirizados do sistema penitenciário do estado de São Paulo contra a Covid-19. Esgotado o prazo de 20 dias determinado pela Justiça para a apresentação de um plano de contingência, porém, as unidades sindicais ligadas ao serviço (SIFUPESP, SINDCOP e SINDASP) denunciam que ainda não há realização de testes em massa ou entrega de EPI’s em quantidade suficiente para os trabalhadores.
Segundo a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), a liminar só acolheu parte das alegações dos sindicatos, “que vêm espalhando irresponsavelmente inverdades sobre o sistema prisional do estado de São Paulo”. Em nota, a pasta afirmou que já está cumprindo a decisão judicial e que a testagem de servidores e custodiados está no planejamento definido pelos órgãos de Saúde.
“Entre os presos, tudo é pior”
Se a pandemia é um foco de preocupação entre os trabalhadores penitenciários, a crise assume uma outra proporção dentro das celas. De acordo com o painel do Departamento Penitenciário Nacional - Depen, existem 6.626 casos da Covid-19 entre reeducandos no país, com 66 óbitos notificados. O número, todavia, pode ser bem maior, já que apenas 25,2 mil presos foram testados no Brasil - ainda segundo painel do Depen - cuja população carcerária, terceira maior do mundo, engloba 758.676 pessoas em privação de liberdade.
Além disso, cerca de 80% das pessoas presas em flagrante durante a pandemia
ingressaram no sistema prisional sem que a Justiça fosse informada sobre eventuais sintomas manifestados pelos presos, sobre exposição deles ao vírus ou se pertenciam a grupos de risco mais vulneráveis à Covid-19.
“Logo no início da pandemia, quando eles ficaram sabendo dos riscos e antes de qualquer medida do governo, os próprios presos pediram para não receber mais visitas. A gente ficou bem chocado porque esse é o direito pelo qual eles mais lutam. Quando tem qualquer problema que exige punição aqui, a gente ameaça tirar as visitas. Dessa vez partiu deles”, conta Gustavo Farias, agente penitenciário no interior pernambucano. De acordo com o Depen, o Nordeste é a região mais atingida pela doença no país.
Já no interior paulista, o psicólogo Fernando Abreu*, que desde 1993 trabalha em ações de ressocialização na mesma unidade penitenciária, diz que a saúde mental dos pacientes também está abalada. “Ontem eu precisei atender um reeducando em crise aguda de ansiedade. Não é um problema raro entre eles, mas desta vez ele tinha medo de se infectar. Não queria sair da cela ou fazer atividades, pois estava com medo do vírus”, conta o profissional.
Fernando também explica que, quando um dos presos apresenta sintomas da Covid-19, a cela inteira precisa ficar isolada, o que significa cerca de 14 dias sem banho de sol ou qualquer atividade, agravando a tensão da crise. “Eles querem saber quando vão poder receber visitas, perguntam sobre a descoberta da vacina. Todos nós estamos assim, né? Todo mundo tem medo. Mas entre os presos tudo é pior”, finaliza o psicólogo.
*Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.