Tocaias feitas por policiais para emboscar traficantes em favelas do Rio muitas vezes terminam em mortes de inocentes. A prática é chamada de “troia” no jargão policial — referência ao cavalo de madeira que abrigava soldados em seu interior construído pelos gregos como estratégia para enganar os troianos e invadir a cidade. Apesar de a estratégia não ser admitida pelos agentes, investigações de homicídios que aconteceram durante operações da PM revelam que vítimas foram mortas por policiais acusados de invadir casas sem mandado judicial para surpreender criminosos.
Num dos casos, a Polícia Civil já concluiu que dois inocentes foram assassinados, em 16 de janeiro deste ano, com tiros feitos de cima para baixo por PMs que estavam de tocaia num apartamento na Favela do Vidigal, na Zona Sul. O EXTRA teve acesso ao inquérito da Delegacia de Homicídios (DH), que conseguiu provas que desmentem a versão apresentada por quatro policiais militares do Grupamento de Intervenção Tática (GIT) da Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) investigados pelo crime. Eles afirmaram, em seus depoimentos, que trocaram tiros com criminosos num beco da favela e encontraram quatro homens feridos em seguida. Todos foram levados ao Hospital Miguel Couto, onde chegaram mortos.
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O laudo cadavérico das vítimas chamou a atenção dos investigadores: todas foram atingidas por tiros de fuzil disparados de cima para baixo. O depoimento de uma moradora do Vidigal abriu uma nova frente na investigação que explicaria o padrão dos disparos: a testemunha contou que os PMs invadiram um apartamento exatamente em cima de onde os homens foram mortos ainda na parte da manhã. Segundo a mulher, os agentes “esperaram uma moradora sair de casa e ficaram abrigados no interior da mesma até a hora dos disparos, na parte da tarde”.
Uma perícia feita no local do crime conseguiu precisar o local exato de onde os tiros foram dados: “Os agentes encontravam-se no interior do imóvel e efetuaram os disparos a partir do vão no segundo pavimento da fachada frontal do prédio”, afirma o perito no laudo. A DH concluiu que os agentes prepararam uma emboscada naquele ponto para surpreender traficantes numa boca de fumo que ficava logo abaixo do prédio.
Afastamento dos PMs
Dois dos mortos na operação do dia 16 de janeiro no Vidigal, entretanto, eram inocentes que somente estavam passando pelo local errado na hora errada: o porteiro Cláudio Henrique Nascimento de Oliveira, de 24 anos, e o entregador de supermercado Marcos Guimarães da Silva, de 51. Parentes dos outros mortos — Ivanildo Moura de Souza, de 22 anos, e Douglas Rafael Barros Assunção, de 18 — admitem o envolvimento de ambos com o tráfico. No entanto, segundo a perícia, os dois estavam comendo quando foram baleados: duas quentinhas foram apreendidas no local.
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Ao fim da investigação, a DH pediu o afastamento dos PMs das ruas. O inquérito foi remetido ao Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp) do MP do Rio, que vai ser responsável por denunciar os agentes.
Outra “troia” é denunciada por parentes de dois jovens mortos por PMs do 3º BPM (Méier) no Bairro Carioca, condomínio do programa “Minha casa, minha vida” em Benfica, na Zona Norte. Os crimes aconteceram em julho de 2019. De acordo com parentes do lavador de carros Marcos Felipe Monteiro, de 21 anos, e do mototaxista Davi de Assis, de 19, os agentes estavam de tocaia num apartamento e dispararam do alto.
“Os policiais fizeram uma operação mais cedo e ficaram dentro do prédio. Meu irmão morava na Mangueira e foi para lá trabalhar num lava-jato. Estava trabalhando quando tomou três tiros”, conta Yndayara Monteiro, irmã de Marcos. A família está processando o estado. O caso segue sob investigação da DH e da Corregedoria da PM.
Áudio de traficante
Um áudio gravado por um traficante também levantou a suspeita do uso da “troia” numa operação da PM na Vila Aliança, na Zona Oeste, no último dia 3 de abril. “Quer fazer ‘troia’ com a tropa, mané? Carrega teu amigo aí. Quer fazer ‘troia’ com a tropa?”, provocou o criminoso via radiotransmissor. Durante a ação, o cabo Marco Antônio Matheus Maia foi atingido por um disparo na cabeça. Um vídeo feito por um morador mostra o socorro ao PM: um colega, sem farda e desarmado, saiu da favela carregando o agente.
Questionado sobre a legalidade da “troia”, o promotor Paulo Roberto Mello Cunha Junior, que atua junto à Auditoria Militar, afirma que o fator surpresa faz parte da atuação policial. No entanto, ele afirma que expor inocentes a risco é inaceitável. “É inadmissível que terceiros sejam lesionados ou mesmo colocados em risco num cenário em que for possível à força policial evitar um confronto”, diz o promotor.
O EXTRA perguntou à PM, se “troias” são permitidas e aceitas pela corporação. “As ações no enfrentamento ao crime organizado são planejadas com base em informações de inteligência, tendo como preocupação central a preservação de vidas e o cumprimento das decisões da Justiça”, respondeu a PM, em nota.