Corações foram pintados em locais de tiros
Divulgação/Favela art
Corações foram pintados em locais de tiros

Há exatamente um mês, durante a madrugada do dia 21 de setembro, chegou a notícia que ninguém queria receber: após ser baleada quando chegava de Kombi com a mãe ao Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, a menina Ágatha Félix , de 8 anos, morreu. Ela passou boa parte de sua vida convivendo com a rotina de violência que, desde 2014, voltou a assolar o conjunto de favelas. Confrontos quase diários, a maioria entre policiais militares e traficantes. Assim como Ágatha, milhares de outras crianças têm que conviver com tiros e bombas.

— Quando tá passando bala pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, e pode me acertar, vou ficar deitada. Depois eu corro pro canto. A gente tem medo de ser baleada — disse uma menina ao ser perguntada sobre como se comporta quando começa um tiroteio no Alemão.

Muitas dessas crianças colocam no papel e nas telas o medo que sentem nessas situações, durante o tempo que passam em oficinas do projeto Social Favela Art, que atende a 260 meninos e meninas do Complexo do Alemão que estão em situação de vulnerabilidade. Idealizadora do iniciativa, a artista plástica Mariluce Mariá diz que os primeiros desenhos surgiram em 2014.

— Até então estava pacificado. Você não via essa frequência de tiroteio. Não tinham essas operações. Então, eles não colocavam nada disso nos desenhos. Os desenhos nos quadros geralmente são de casinhas, de todo tipo de casinhas, e sempre tudo colorido. E as crianças passaram a desenhar desenhos que eram sem cor. Marrons, cinzas. E cada cor que a gente pinta, expressa um sentimento. E eles falavam que o sentimento deles perdia a cor mais feliz, mais vibrante — contou Mariluce.

O primeiro sinal a surgir nas pinturas indicando que a rotina de violência estava interferindo nelas veio na forma de pequenos pontos pretos:

— As crianças começaram a colocar uns pontinhos e eu achei estranho. Perguntei o que era e eles falaram: "tia, esses são os tiros". Tem a foto de um dos meninos do projeto, que na época tinha 6 ou 7 anos, que desenhou uma caveira (símbolo do Batalhão de Operações Especiais, o Bope). Assim ele falava: "Não sei desenhar esse policial, tia. Eu só sei desenhar assim".

De acordo com a artista plástica, em 2015 surgiram os primeiros desenhos de helicópteros:

— Antes de 2015, quando tínhamos operação com helicóptero essas crianças eram muito miudinhas. Eles nem devem lembrar. Eles passaram a ver mesmo, a perceber os helicópteros, em 2015, quando já tinham 6, 7, 8 anos. Aí sim eles souberam que a polícia tinha helicópteros.

Caveirão nos quadros

Na Praça do Samba, uma parede chama a atenção: coberta por corações, feitos por crianças do Favela Art, ela era para ser símbolo do amor. Mas, agora, a pintura retrata a triste realidade do Alemão: marcas de tiros dividem espaço com os desenhos.

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— Essa é a primeira praça do Alemão e era um local cultural e sem saída. Agora tem uma base blindada lá no meio. Impossível realizar eventos e sequer manobrar qualquer veículo. As crianças nem brincam lá — contou Mariluce.

Uma das crianças do projeto mora perto dessa praça. De acordo com a artista plástica, é uma menina que usa muito a imagem do caveirão em seus desenhos:

— Eu conversei com ela para saber o motivo. Ela disse: "tia, minha casa está toda furada porque toda vez que o caveirão vem, ele dá tiros na minha casa". Isso ficou muito marcado na cabeça dela.

Escola mais interessante

Para Mariluce, o principal caminho para o fim da violência é investir na educação. A artista plástica acredita que o modelo atual esteja ultrapassado e, por isso, muitas crianças abandonam a escola.

— Se os governantes de hoje em dia começassem a investir mais na educação e fazer a educação primária ser mais interessante, que ela direcione os alunos já para algo que seja de interesse deles para uma profissão no futuro, isso já colaboraria muito para diminuir a violência. Porque as crianças começariam a enxergar perspectivas, a realidade de oportunidades futuras — disse ela.

Mariluce frisa que muitos adolescentes moradores de comunidades se frustram com o modelo atual:

— Hoje a escola é só didática mesmo. Ela só te ensina o básico, que é saber ler e escrever. Uma parte da história, algumas fórmulas, que não te dão um horizonte de onde você tem que ir. É uma decepção que os adolescentes, por exemplo, acabam tendo. Porque acham que vão conseguir aprender na escola algo para ajudá-los a trabalhar no futuro. E isso, para quem mora em comunidade, é uma coisa que tira o sentido da escola.

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