Menina Ágatha Vitória foi atingida com tiro de fuzil nas costas e morreu. Caso é semelhante ao da jovem Karolayne, em 2017
Arquivo pessoal
Menina Ágatha Vitória foi atingida com tiro de fuzil nas costas e morreu. Caso é semelhante ao da jovem Karolayne, em 2017

A morte da menina Ágatha Félix, de 8 anos, no último dia 20, na localidade conhecida como Fazendinha, no Complexo do Alemão, fez reacender o desejo de justiça de uma mãe que
sofre desde o dia 9 de janeiro de 2018 pela perda da filha. E nesta terça-feira (1º), a reconstituição do crime pode aumentar esse sofrimento , que começou do mesmo jeito e no
mesmo local onde a criança foi atingida por um tiro de fuzil nas costas.

A vendedora autônoma Jaqueline Nunes Cardoso, de 39 anos, perdeu a filha e a futura neta que estava no ventre de Karolayne Nunes de Almeida Alves, atingida por três tiros de fuzil no dia 12 de dezembro de 2017 ao ficar, com o marido, entre policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) local e dois homens em uma motocicleta que passaram pelo casal fazendo disparos para o alto.

Ao identificar sua dor pela perda da filha com o sofrimento de Vanessa Francisco Sales, mãe de Ágatha , Jaqueline decidiu ir ao enterro do corpo da criança, no Cemitério de Inhaúma, o mesmo onde está enterrado o corpo de Karolayne. Para Jaqueline, a tragédia da família Félix a fez acordar para a realidade. Ao ir ao cemitério, ela se sentiu forçada a visitar pela primeira vez a gaveta onde está o caixão com o corpo da filha.

"Há uma ligação divina entre as tragédias da Ágatha e da minha filha. Depois é que eu entendi o porquê de eu ter ficado muito ligada no caso. Os crimes aconteceram no mesmo lugar e à noite. Eu sei o que essa mãe está passando. Foi uma coisa comigo e Deus. Quando cheguei no cemitério, onde nunca tinha ido para ver a gaveta onde está o corpo de minha filha, me senti forçada a ir até ela. E foi neste momento que caiu em mim a ficha dizendo que minha filha não voltará jamais", relatou.

"Meu marido nem sabe disso, mas fui até a gaveta onde está o corpo de nossa filha e fiz uma fotografia. Eu caí na real diante do sofrimento de mais uma família. Eu fiquei desnorteada. Liguei para o meu esposo e vim sozinha pela rua debaixo de chuva com o guarda-chuvas na mão, fechado. Nem me toquei que eu estava com o chapéu na mão", acrescentou.

O marido de Karolayne, o militar da Brigada Paraquedista do Exército Ailton Costa, reconheceu um dos dois policiais militares que atiraram contra a dupla na moto como o autor
dos tiros que atingiram sua mulher, então grávida de cinco meses e meio de Lorena. Porém, isso não foi suficiente para auxiliar as investigações da Polícia Civil, que nem a reconstituição do crime fez porque a Justiça considerou o local uma área de risco para o procedimento. Jaqueline reclama do descaso das autoridades.

O caso foi registrado na 44ª DP (Inhaúma) e, depois, transferido para a 45ª DP (Alemão), que foi extinta no ano passado. Agora, é a 22ª DP (Penha) a responsável pela investigação. Por meio de nota, a Polícia Civil informou que foi realizado confronto balístico de um projétil arrecadado no carro onde estavam as vítimas com as armas apreendidas dos PMs. Segundo a corporação, o resultado foi inconclusivo:

"O inquérito policial está em andamento para cumprir diligências determinadas pelo Ministério Público. Os PMs envolvidos na ação e as pessoas que estavam no interior do veículo já foram ouvidos na unidade policial. O laudo foi inconclusivo”, diz a nota.

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O advogado Rogério Cury, que representa a família no processo cível que move contra o Estado do Rio requerendo indenização por dano moral, pediu à juíza em exercício da 1ª Vara
de Fazenda Pública Mônica Ribeiro Teixeira a realização de confronto balístico, o que até hoje não foi feito. As armas de policiais que participaram do confronto foram apreendidas, mas ele não soube dizer se continuam acauteladas.

"Em despacho à Justiça feito esta semana requeri serviço médico para a família de Karolayne, acautelamento do projétil (encontrado dentro do carro, a perícia das armas, o depoimento dos policiais, a reconstituição do caso e indenizações", relata.

A perícia no carro onde estava o casal, um Gol preto que os pais deram de presente a Jaqueline quando ela completou 18 anos, não encontrou projéteis. Foi o taxista Jorge de
Almeida Alves, pai de Karolayne, que vasculhou o carro inteiro dois dias depois da períica e conseguiu encontrar um projétil.

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O processo teve início em março de 2018. A juíza Mônica Ribeiro decidiu que o Estado prestasse tratamento psiquiátrico e psicoterápico à família de Karolayne. Porém, ressaltou
Cury, o marido de Jaqueline e a outra filha do casal só tiveram uma sessão com a psicóloga da clínica da família mais próxima da residência dos três. E Jaqueline teve apenas três. O motivo foi a saída da psicóloga e a não reposição da vaga.

Jaqueline estava recebendo do governo do Estado o tranquilizante Clonazepam. Há um mês, o estoque acabou e ela está tendo que comprar com o dinheiro da família. "Eu já não conseguia dormir. Passei a tomar dois comprimidos de 2mg cada todas as noites. Só consigo dormir desta forma", diz ela.

Em entrevista exclusiva ao GLOBO , ela disse que está se sentindo culpada pelo que aconteceu com a menina Ágatha. Isso pelo fato de ter se fechado, deprimida, e não ter desabafado sua angústia com ninguém, Ela diz achar que poderia ter cobrado com veemência Justiça para o caso de sua filha concedendo entrevistas à imprensa.

"Disse para a Vanessa (mãe da Ágatha) para falar com a imprensa, para se expor, para cobrar justiça. Eu não tive forças e, agora, me sinto culpada. Se tivesse me exposto depois da morte de minha filha talvez esse tipo de situação de tiros dentro de comunidades com inocentes presentes não estivesse mais acontecendo", setencia.

"Eu disse a ela para me chamar em qualquer situação. Acho que nós duas podemos nos ajudar a enfrentar estas tragédias. Eu não costumo entrar na Fazendinha. Mas se ela precisar, vou até lá a qualquer hora. Estamos ligadas pelo mesmo sofrimento", completa.

Jaqueline ainda guarda detalhes do momento em que sua filha esteve internada no Hospital Miguel Couto, na Gávea, Zona Sul. Ela disse que a pressão de sua filha aumentou tanto numa determinada ocasião que ela acabou sofrendo uma isquemia.

"Os médicos permitiram a minha entrada no CTI quando já não havia mais chance de recuperação. Entrei pela sala dos médicos, e enfermeiras tentaram impedir o meu acesso no CTI. Médicos intervieram e liberaram. Quando eu estava lá o batimento cardíaco dela estava caindo. Aí eu falei para a minha outra filha: “ela não está mais aqui”. E lembro de ter saído e encontrado meu marido socando a parede do corredor e gritando “Deus, por que o senhor não trouxe minha filha de volta?”. Segundos depois, um médico apareceu e disse que ela tinha acabado de falecer. Mas, eu vi o batimento cardíaco dela. Sei que ela me esperou para partir", conta, em lágrimas.

Jaqueline disse que a religiosidade da família pode ter dado uma sobrevida à filha. A família é evangélica e Karolayne orava constantemente e costumava ir aos cultos. Ela disse que tentou esconder a perda do bebê para não agravar o estado de saúde.

"Uma semana depois da internação, ela estava com um tubo na boca e perguntou sobre a neném. Eu falei que estava tudo bem. E ela balançava a cabeça que não. Falou baixinho que a
bebê tinha morrido, que o médico disse para ela. A lágrima dela desceu. Eu insisti dizendo que estava tudo bem e ela balançou a cabeça de nova e disse “morreu”. Depois, ela teve vários tipos de complicações e entrou em coma. Ela não estava reagindo às medicações e aí entrou em coma vigil (estado de inconsciência e de perdas de reações a estímulos) e estava de olhos abertos", lembra.

"E todos os dias eu cantava um louvor para ela. Eu orava por ela todos os dias. Esperava que Deus fizesse um milagre, que por mais que os médicos dissessem que o caso dela estava piorando, eu dizia que quem mandava, quem comandava era Deus. Eles deram um prazo para mim de 12 horas, depois 24, e, depois, 72. Depois, o médico relatou que não sabia o que a gente estava fazendo, mas que estava surtindo efeito. Que não sabia de onde vinha essa força que ela tinha. Eu disse que vinha de Deus", complementa.

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Jaqueline lamenta pelos novos episódios de violência, como o de Ágatha . "O que me deixa mais entristecida é que (tiros) não estão parando. Quero que faça algo porque se a gente
não gritar, não se juntar não vai parar. E ninguém vive lá dentro para saber como é que eles (PMs) entram. Eles entram com sangue nos olhos. Então, eu quero que os governantes
façam alguma coisa".

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