Passageiros da linha de õnibus 2520 - Jardim Guanabara/Estácio em São Gonçalo, onde ocorreu o sequestro do ônibus na ponte Rio-Niterói
Gabriel de Paiva/ Agência O Globo
Passageiros da linha de õnibus 2520 - Jardim Guanabara/Estácio em São Gonçalo, onde ocorreu o sequestro do ônibus na ponte Rio-Niterói

A rotina de Rafaela Gama foi alterada nesta quarta-feira (21). A jovem de 20 anos que trabalha como recepcionista em um prédio na Rua do Senado, no Centro do Rio, dessa vez não
pegou o ônibus da linha 2520 na Praça do Rocha, em São Gonçalo, às 4h30. Ela estava no ônibus sequestrado na Ponte Rio-Niterói , na manhã desta terça-feira (20).

Embora esteja fisicamente bem — nenhum refém ficou ferido no episódio —, ela ainda guarda as marcas psicológicas do sequestro do ônibus da linha, que durou por mais de três horas e interditou a via de acesso entre os municípios do Rio e Niterói.

"Acho que vou ficar parada até esse fim de semana. Pensei que estava tudo bem, mas foi complicado para dormir. Agora que a ficha está caindo. Quando saí da delegacia ontem
(terça-feira, após o sequestro) eu estava calma. Mas dentro de casa eu fico insegura. Quase não dormi. Escuto um barulho e já fico preocupada. Graças a Deus deu tudo certo. Eles
(o governo estadual) ofereceram assistência psicológica. Vamos fazer um tratamento", relata Rafaela, que estuda gestão financeira.

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No seu trabalho há uma preocupação de que ela não esteja apta a voltar a rotina. Rafaela conta que sua chefe ficou preocuada ao perceber, durante uma conversa, que a jovem
estava com dificuldade de concentração, e pediu que ela faça uma avaliação psicológica antes de retornar ao trabalho.

"Dá uma tensão só de pensar em pegar o ônibus", desabafa, acrescentando: "A psicóloga disse que vai conversar comigo para saber se há necessidade de uma licença (médica). Acho
que não estou bem ainda, mas não quero me aproveitar da situação. Acho que até segunda estarei bem".

Enquanto se recupera, Rafaela não desiste dos planos para o futuro. Além do curso tecnólogo em gestão financeira, ela faz curso de agente de aeroporto. Há um mês passou a morar
com o noivo, o mecânico industrial Lucas Leão, de 22 anos, e não para de planejar o próximo passo: uma festa em 2020 para oficializar o casamento.

Itinerário alterado

Já o auxiliar de cartório Robson Oliveira , de 59 anos, alterou o itinerário que faz todos os dias entre a sua casa, em São Gonçalo, e o trabalho, no Centro do Rio. Nesta quarta-feira (21), ele desistiu de usar a linha que teve um ônibus sequestrado para se deslocar até o trabalho. Oliveira, que descreve as horas passadas dentro do ônibus como "terror psicológico", teve dificuldades para dormir. Embora não tenha deixado de trabalhar no dia seguinte do crime, passou a usar duas conduções para mudar a forma de se deslocar até o Rio.

"Foi um terror psicológico. Durante a madrugada a cena ficava vindo na minha cabeça. Tentava dormir, mas não conseguia. Estou indo para o centro de Niterói e de lá pego barca
para o Rio. Vou mudar a minha rotina por um tempo até esquecer. Ainda tenho receio de fazer isso. Posso até voltar para pegar ônibus", diz Robson, que trabalha em um cartório no
Centro do Rio e compareeu nesta quarta para não deixar os companheiros "na mão".

Aliviado, ele diz que ainda está vivendo o pesadelo. Oliveira foi o quinto refém a ser liberado pelo sequestrador. Para isso, ele conta que precisou fingir que estava passando
mal.

"Fiz uma cena de uma pessoa que ia desmaiar, que estava passando mal. Aí ele mandou eu sentar na frente do ônibus, depois disse que ia me liberar. Eu fiquei sentado meio torto
para tocar o coração dele. Eu estava consciente, mas eu queria convencê-lo de que estava passando muito mal. Fui um ator. Agora é me recuperar do trauma que passei", acrescenta
ele, que ficou apavorado quando o sequestrador falou para os passageiros que iria reviver o caso do ônibus 174, sequestrado em 2000 no Jardim Botânico, Zona Sul da cidade.

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'Não dá para ficar indiferente'

O professor de geografia Hans Miller Moreno do Nascimento , de 34 anos, também não foi dar aula hoje. A escola particular onde trabalha, em Santa Cruz, liberou o docente, que
pretende retornar às aulas nesta quinta-feira. Ele, que trabalha em sala de aula há 13 anos, diz que não dá para ficar indiferente ao caso. Diariamente, realiza o trajeto de duas horas e meia entre São Gonçalo e o bairro da Zona Oeste do Rio na ida e na volta do trabalho. Além do ônibus, o docente ainda precisa pegar trem na Central do Brasil. O episódio marcante fez o professor perceber como está vulnerável no transporte público do Rio.

"Passei a noite com pesar, com tristeza. Não dá para ficar indiferente. Foi algo inédito para mim. A gente sabe que está exposto, mas quando passa por uma situação assim a gente
percebe como estamos vulneráveis. Tenho que fazer esse trajeto, não tenho outra opção. A única opção que eu tenho é ter fé. É só isso. Quanto mais tempo você passa na rua maior
é a exposição. Esse tempo da viagem passo exposto no transporte público. Muita gente fica (exposta). Eu só via esse tipo de coisa em terceira pessoa, agora tô vendo em primeira
pessoa. A gente percebe a magnitude do problema", constata Nascimento.

'Infelizmente, nosso país é assim'

O auxiliar administrativo Luan Tavares , de 24 anos, também planeja retomar a vida normal nesta quinta-feira. Sentado no fundo do ônibus, ele ainda lembra do momento em que os
passageiros ouviram disparos e se jogaram no chão. Apesar do susto, ele se mostra mais pragmático e, após o susto, diz que é preciso "preparar a mente" já que a violência faz
parte do país.

"A gente fica meio apreensivo ainda no primeiro dia, mas sabe que, infelizmente, nosso país é assim. A violência, infelizmente, não vai acabar. A gente acaba se acostumando e
tentando preparar a nossa mente", finaliza Tavares, que também foi refém no sequestro do ônibus .

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