Criado pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Dia Internacional da Mulher foi consolidado como uma data para relembrar a luta contínua do sexo feminino por melhores condições de vida e trabalho. Apesar dos diversos direitos conquistados desde o final do século 19, dados em torno de casos de violência e de feminicídio ainda registram números assustadores e mostram como ainda é perigoso ser mulher, em pleno século 21.
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Em fevereiro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) destacou que, em menos de dois meses, ao menos 126 mulheres foram mortas no Brasil, além de outros 67 casos de tentativa de feminicídio , em mais de 90 cidades e 21 estados do Brasil.
Os números aumentaram ainda mais com as festas de Carnaval que aconteceram em todo o País desde o último fim de semana. Apesar de as autoridades ainda não terem consolidado o total de casos registrados, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) divulgou nesta quinta-feira (7) – um dia antes do Dia da Mulher – que, pelo menos, oito mulheres foram assassinadas em apenas cinco dias de folia.
Em casa, com arma de fogo e cometido por parceiros ou ex-parceiros. Esse foi o quadro que mais se repetiu dentre os casos de feminicídio registrados somente em 2019. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil já tem a quinta maior taxa de feminicídios entre 84 nações pesquisadas. E, a despeito de possuir diversas políticas de proteção à mulher – como a Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em 2006 – o País ainda convive com a rotina de uma mulher morta a cada duas horas.
No último dia 16, um episódio chocou o País e ilustrou os casos de violência contra a mulher que acontecem no Brasil inteiro. A paisagista Elaine Caparroz foi espancada por quatro horas , durante um encontro em seu apartamento, na Barra da Tijuca, com o lutador Vinícius Serra.
Serra foi preso em flagrante e depois levado para um hospital psiquiátrico, a fim de avaliar sua sanidade mental, além de ter sido indiciado por tentativa de feminicídio. Na semana passada, a Justiça do Rio de Janeiro aceitou a denúncia oferecida pelo Ministério Público contra o lutador, que confessou o crime.
O acusado passou, assim, à condição de réu e começou a responder ao processo judicial. "Em se tratando deste caso em particular, verifico pelas detalhadas declarações da vítima sobrevivente que o denunciado não poupou esforços para impingir-lhe demorada sessão de espancamento”, escreveu o juiz Alexandre Abrahão Dias Teixeira, titular da 3ª Vara Criminal do Rio.
Segundo a promotora Valéria Scarance, que coordena o Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), o aumento do número de registros de casos de feminicídio não é, por si só, um dado ruim, já que o primeiro passo para a mudança é reconhecer tais mortes, não apenas como homicídios, mas sim como feminicídios.
“Nesse contexto de morte violenta de mulheres, o número de fatos enquadrados como feminicídio também aumentou. Ou seja, o número de mortes é um número absoluto, mas o número de feminicídios é variável porque depende da interpretação que se dá no momento de registro da ocorrência. Aumentar esses números é um aspecto positivo e que revela envolvimento e conscientização por parte das autoridades”, declarou a promotora para a Agência Patrícia Galvão.
Feminicídio e a aversão às mulheres
A denominação foi dada para caracterizar casos de mulheres que são mortas em condições discriminatórias e de desigualdade de gênero. Basicamente, feminicídio é o homicídio de mulheres pelo fato de serem mulheres e pode ser classificado em íntimo (quando são cometidos por companheiros ou ex-companheiros) e não íntimo.
Segundo a mestre em demografia Jackeline Romio, da Unicamp, os casos de feminicídio são caracterizados como mortes evitáveis, que podem ser intervindas por meio da mobilização social ou por medidas públicas.
Foi a partir disso, que em 2015, uma lei passou a considerar esse tipo de homicídio como um crime hediondo, com pena de 12 a 30 anos de prisão. Porém, não é sempre que a lei funciona e muitos casos não são registrados por serem considerados “sem importância”, de acordo com o professor Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela USP (Universidade de São Paulo).
Além disso, por ser uma lei recente, a aplicação dela nas delegacias está começando somente agora. “É dever do Estado pressionar a área da segurança pública para que efetivamente registrem os assassinatos de mulheres como feminicídios, ao menos os causados pela violência doméstica, familiar e sexual”, disse Jackeline.
Izabel Solyszko, pós-doutora em gênero e desenvolvimento pela Universidad de los Andes, em Bogotá, traz ainda outro motivo para a falha no registro dos casos: a imprecisão dos atestados de óbito, dos registros das secretarias de segurança pública do País e do sistema Judiciário quanto à causa da morte da vítima. Tal fator dificulta a determinação de quais casos são caracterizados como feminicídio e quais são homicídios decorrentes de outras causas.
Mas, afinal, o que motiva tais crimes? Considerando que é causado pela aversão dos homens às mulheres, esse tipo de ato seria motivado puramente pelo caráter machista. Segundo Jackeline, o desequilíbrio de poder, a subalternação e objetificação das mulheres e a exploração do trabalho delas na sociedade colocariam o gênero em situações de morte dentro de relações domésticas, familiares e sexuais.
A não aceitação de um término de namoro ou de casamento, o consumo excessivo de álcool ou drogas pelos homens, somados a um discurso de ódio, formam o cenário perfeito para que haja a motivação de atos violentos contra as mulheres. “O feminicídio ocorre na cotidianidade de uma sociedade patriarcal onde as mulheres são castigadas por meio da morte quando não cumprem com os papeis de gênero historicamente outorgados”, comentou Izabel.
As chances de isso acontecer são ainda mais altas entre mulheres negras, em idade reprodutiva e de baixa renda. Apesar de todos os tipos de armas serem usadas durante os crimes, as armas de fogo (como o revólver) e branca (como a faca) sãs as mais comuns nesses casos, que normalmente acontecem dentro de casa.
Mas engana-se quem pensa que os parentes ou amigos das vítimas são pegos de surpresa quando o crime acontece. Segundo Izabel, o feminicídio íntimo – aquele cometido pelo companheiro – é uma morte anunciada. "Dificilmente uma relação que não estava marcada pela violência física, sexual, psicológica ou patrimonial termina em feminicídio."
Na maioria das vezes, as pessoas próximas à mulher sabem as condições às quais a vítima vive dentro de casa. Porém, o grande problema apontado por Izabel é o julgamento que a mulher precisa enfrentar pelo fato de ser uma pessoa que sofre violência e mora com o agressor. Junto com o medo da reação do companheiro, o julgamento torna-se um fator que impede que as vítimas busquem ajuda quando necessário.
Tal quadro é mais comum do que se imagina. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha a pedido do FBSP (Fórum Brasileiros de Segurança Pública) destacou que 52% das mulheres que sofreram agressão no ano de 2018 ficaram caladas. O levantamento foi divulgado na última semana e ouviu um total de 1.092 mulheres, em 130 municípios brasileiros.
Além disso, a pós-doutora ainda aponta que é importante que medidas protetivas sejam acionadas antes que algo pior aconteça. A Lei Maria da Penha, por exemplo, proíbe a aproximação ou contato do agressor com a vítima e é uma medida que pode ser acionada pela mulher durante a denúncia.
“A mulher precisa de muita ajuda para conseguir sair do ciclo de violência, mas a rapidez do Estado em responder às demandas por segurança da mulher será a forma mais efetiva de diminuir o número de mortes”, explicou Jackeline.
O futuro feminino
A tendência futura não é exatamente de que os casos diminuam, mas sim de que eles sejam, cada vez mais, reconhecidos e registrados, graças aos protocolos internacionais, leis, pressão dos movimentos feministas e a intensificação dos debates. Porém, ainda há um longo caminho para ser percorrido a fim de que os casos de feminicídio tenham uma diminuição significativa.
“A gente precisa pensar em como destruir a sociedade patriarcal, como construir relações entre os gêneros mais iguais, como conviver a partir da humanidade e não da destruição”, afirmou Izabel.
Apesar de as legislações e das leis penais (como a Lei Maria da Penha e a lei do feminicídio) serem importantes para que os problemas sociais sejam punidos e reconhecidos, políticas educativas ainda são requisitadas para que a estrutura social e as práticas culturais sejam alteradas.
“Ninguém mais aguenta ver os corpos das mulheres sendo exibidos como moeda de troca na publicidade. Sendo sempre comparados a um objeto. É só uma decoração. Tudo isso precisa ser transformado”, afirmou a assistente social.
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Apesar da necessidade de mudança contínua, neste Dia Internacional da Mulher diversas mulheres devem sair às ruas, em pelo menos 22 estados brasileiros para protestar contra o machismo, os diversos casos de feminicídio , de violência contra a mulher, de desigualdade, de racismo e LGBTfobia. O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) também será relembrado em marchas que pedem pela solução do caso que já completou um ano.