Só em 2019, pesquisa sobre casos de feminicídio mostrou resultados alarmantes
Reprodução
Só em 2019, pesquisa sobre casos de feminicídio mostrou resultados alarmantes

Em casa, com arma de fogo e cometido por parceiros ou ex-parceiros. Esse é o quadro que mais se repetiu dentre os mais de 100 casos de feminicídio registrados no Brasil, somente neste primeiro mês de janeiro, segundo levantamento feito pelo professor Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela USP (Universidade de São Paulo). Em três semanas, mulheres foram vítimas de atentados em, pelo menos, 94 cidades e 21 estados do País, sendo que mais de a metade dos casos aconteceram durante os finais de semana.

Leia também: Jovem é espancada e morta pelo marido durante visita íntima em prisão, em SP

O estudo foi divulgado pelo jornal O Globo e registrou a onda de casos de feminicídio , que, para além do início de 2019, tem se manifestado já ao longo dos últimos anos. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil já tem a quinta maior taxa de feminicídios entre 84 nações pesquisadas. E, a despeito de possuir diversas políticas de proteção à mulher – como a Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em 2006 – o País ainda convive com rotina de uma mulher morta a cada duas horas.

Segundo a mestre em demografia Jackeline Romio, da Unicamp, mais de 4 mil mulheres morrem anualmente no País vítimas de agressão física, sendo que destas, 60% são vítimas de feminicídio.

A denominação foi dada para casos de mulheres que são mortas em condições discriminatórias e de desigualdade de gênero. Basicamente, feminicídio é o homicídio de mulheres pelo fato de serem mulheres e pode ser classificado em íntimo (quando são cometidos por companheiros ou ex-companheiros) e não íntimo.

Segundo Jackeline, os casos de feminicídio são caracterizados como mortes evitáveis, que podem ser intervindas por meio da mobilização social ou por medidas públicas. Foi a partir disso, que em 2015, uma lei passou a considerar esse tipo de homicídio como um crime hediondo, com pena de 12 a 30 anos de prisão. Porém, não é sempre que a lei funciona e muitos casos não são registrados por serem considerados “sem importância”, de acordo com o professor da USP.

Além disso, por ser uma lei recente, a aplicação dela nas delegacias estaria começando somente agora. “É dever do Estado pressionar a área da segurança pública para que efetivamente registrem os assassinatos de mulheres como feminicídios, ao menos os causados pela violência doméstica, familiar e sexual”, diz Jackeline.

Izabel Solyszko, pós-doutora em gênero e desenvolvimento pela Universidad de los Andes, em Bogotá, traz ainda outro motivo para a falha no registro dos casos: a imprecisão dos atestados de óbito, dos registros das secretarias de segurança pública do País e do sistema Judiciário quanto à causa da morte da vítima. Tal fator dificultaria na determinação de quais casos são caracterizados como feminicídio e quais são homicídios decorrentes de outras causas.

Feminicídio e a aversão às mulheres

Em 2018, a ONU promoveu diversas ações sociais nos países da América Latina, a fim de diminuir os índices de feminicídio
Reprodução/Agência Brasil/Fabio Rodrigues Pozzebom
Em 2018, a ONU promoveu diversas ações sociais nos países da América Latina, a fim de diminuir os índices de feminicídio

Mas, afinal, o que motiva tais crimes? Considerando que são causadas pela aversão dos homens às mulheres, esse tipo de ato seria motivado puramente pelo caráter machista. Segundo Jackeline, o desequilíbrio de poder, a subalternação e objetificação das mulheres e a exploração do trabalho delas na sociedade colocariam o gênero em situações de morte dentro de relações domésticas, familiares e sexuais.

A não aceitação de um término de namoro ou de casamento, o consumo excessivo de álcool ou drogas pelos homens, somados a um discurso de ódio formam o cenário perfeito para que haja a motivação de atos violentos contra as mulheres. “O feminicídio ocorre na cotidianidade de uma sociedade patriarcal onde as mulheres são castigadas por meio da morte quando não cumprem com os papeis de gênero historicamente outorgados”, comentou Izabel.

As chances de isso acontecer são ainda mais altas entre mulheres negras, em idade reprodutiva e de baixa renda. Apesar de todos os tipos de armas serem usadas durante os crimes, as armas de fogo (como o revólver) e branca (como a faca) sãs as mais comuns nesses casos, que normalmente acontecem dentro de casa.  Dados preliminares do Ministério da Saúde, de 2017, informaram que dos 4.787 óbitos de mulheres por agressão, 2.577 ocorreram por meio de armas de fogo e outros 1.101, por objetos perfurantes. 

Leia também: Homem estrangula namorada e abandona corpo em calçada na zona sul de São Paulo

Mas engana-se quem pensa que os parentes ou amigos das vítimas são pegos de surpresa quando o crime acontece. Segundo Izabel, o feminicídio íntimo – aquele cometido pelo companheiro – é uma morte anunciada. "Dificilmente uma relação que não estava marcada pela violência física, sexual, psicológica ou patrimonial termina em feminicídio."

Na maioria das vezes, as pessoas próximas à mulher sabem as condições as quais a vítima vive dentro de casa. Porém, o grande problema apontado por Izabel é o julgamento que a mulher precisa enfrentar pelo fato de ser uma pessoa que sofre violência e mora com o agressor. Junto com o medo da reação do companheiro, o julgamento torna-se um fator que impede que as vítimas busquem ajuda quando necessário.

“Uma mulher que sofre violência precisa ser escutada, precisa de apoio, precisa de uma rede de pessoas que a apoiem na construção de um projeto pra ela que contemple uma vida sem violência. E, obviamente, é uma pessoa que precisa de orientação profissional”, explicou Izabel.

Além disso, a pós-doutora ainda aponta que é importante que medidas protetivas sejam acionadas antes que algo pior aconteça. A Lei Maria da Penha , por exemplo, proíbe a aproximação ou contato do agressor com a vítima e é uma medida que pode ser acionada pela mulher durante a denúncia.

A Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (180) e outros centros de apoio e ajuda às mulheres também são mecanismos relevantes para orientações sobre onde ir e o que fazer nesses casos. Tudo isso, somado ao bom funcionamento da rede pública, pode barrar casos de violência antes que cheguem ao ápice: o feminicídio.

“A mulher precisa de muita ajuda para conseguir sair do ciclo de violência , mas a rapidez do Estado em responder às demandas por segurança da mulher será a forma mais efetiva de diminuir o número de mortes”, explicou Jackeline.

De acordo com a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Goiás, muitas mulheres costumam chegar ao local para registrar casos de violências contra parceiros e ex-parceiros. O órgão ainda afirmou que não houve mudança significativa no número de denúncias feitas às Deams nos últimos anos, apesar das campanhas de incentivo à denúncia.

O futuro feminino

Luta contra o machismo é uma das principais medidas de combate aos inúmeros casos de feminicídio
Fernando Frazão/Agência Brasil
Luta contra o machismo é uma das principais medidas de combate aos inúmeros casos de feminicídio

A tendência futura não é exatamente de que os casos diminuam, mas sim que eles sejam, cada vez mais, reconhecidos e registrados, graças aos protocolos internacionais, leis, pressão dos movimentos feministas e a intensificação dos debates. Porém, ainda há um longo caminho para ser percorrido a fim de que os casos de feminicídio tenham uma diminuição significativa.

“A gente precisa pensar em como destruir a sociedade patriarcal, como construir relações entre os gêneros mais iguais, como conviver a partir da humanidade e não da destruição”, afirmou Izabel. Apesar de as legislações e das leis penais (como a Lei Maria da Penha e a lei do feminicídio) serem importantes para que os problemas sociais sejam punidos e reconhecidos, políticas educativas ainda são requisitadas para que a estrutura social e as práticas culturais sejam alteradas.

Leia também: Câmera de elevador flagra homem dando socos e tapas em mulher, em Goiás

“Ninguém mais aguenta ver os corpos das mulheres sendo exibidos como moeda de troca na publicidade. Sendo sempre comparado a um objeto. É só uma decoração. Tudo isso precisa ser transformado”, concluiu a assistente social sobre feminicídio .

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!