No meio da pandemia, em abril passado, um projeto da Prefeitura de Curitiba previa multar grupos que distribuíssem comida aos pobres na rua. Em Londrina (PR), em novembro, a Câmara Municipal aprovou lei “antivadiagem” para proibir colchões, barracas ou similares em logradouro público, incluindo marquises de prédios públicos e privados, e impedir repasse de benefícios financeiros sem prévio exame negativo para uso de droga. Em Porto Alegre, pedras pontiagudas foram instaladas na frente de uma agência da Caixa e retiradas depois que o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo, divulgou fotos do caso.
O padre é o responsável por uma série de postagens em redes sociais que ajudaram a disseminar o termo “aporofobia” entre os brasileiros e a colocar em discussão atos de hostilidade contra moradores de rua. Foi ele também quem quebrou a marretadas os paralelepípedos colocados sob viadutos na Zona Leste de São Paulo para impedir moradores de transformá-los em teto.
Cunhada pela filósofa espanhola Adela Cortina, “aporofobia” foi eleita a palavra do ano de 2017 pela Fundación del Español Urgente e incluída no dicionário da Real Academia Espanhola. Significa fobia, pavor e ódio aos pobres. Vem do grego á-poros, que significa pobre, desamparado, sem recursos, unido a fobia.
Na Espanha, foi usada no contexto da chegada em massa de imigrantes à Europa. Foi quando se abriu espaço para um sentimento de hostilidade que, para Adela, não era xenofobia, pois os imigrantes ricos, que compravam imóveis na Espanha ou chegavam como turistas, eram muito bem-vindos.
Num Brasil onde crescem a fome, e a miséria e o desemprego jogaram famílias inteiras nas ruas, o filósofo Mauro Cardoso Simões, professor de Ética e Cidadania na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), observa que a palavra passou a ser usada por ser apropriada ao momento.
Segundo ele, o ódio aos pobres que se observa em atos como o da chamada “arquitetura hostil”, com a instalação de pedras pontiagudas sob marquises e viadutos, é uma evolução do preconceito e da discriminação.
"O ódio é gasolina na fogueira", diz Simões.
O filósofo lembra que, até a década de 1990, dizia-se que os pobres viviam “à margem da sociedade”, ou seja, eram marginalizados. Isso significava que estavam dentro da sociedade, embora em suas beiradas.
Quando a questão passou a ser reconhecida como “exclusão social”, foram criados mecanismos de inclusão para enfrentar o problema. O uso do termo correto, portanto, define o que precisa ser combatido.
‘Esmola vicia’
As imagens de campanhas que pedem que a população não dê esmolas, sob o risco de “viciar” os pedintes ou estimular a mendicância, também vêm sendo postadas por Lancellotti para denunciar a hostilidade crescente à população de rua em cidades país afora. “Não alimente a miséria”, diz uma placa da Prefeitura de Florianópolis. “Para o conforto e a segurança de todos, não dê esmolas neste local”, orienta uma placa de lojista em Franca (SP). “Você não tem ideia do que se faz com ela”, diz uma placa em Santo Antonio da Platina, no Paraná. “Drogas, alcoolismo, criminalidade, prostituição, comodismo”, completa.
Especialistas apontam que as instituições públicas não conseguem tirar as pessoas da rua e oferecer para elas uma vida digna. Em Londrina, por exemplo, onde a lei aprovada pelos vereadores impedia ajuda financeira a dependentes químicos, não há, segundo o Ministério Público local, programas públicos para acolher usuários de drogas.
Segundo especialistas, em um contexto de radicalização nos discursos, primeiro surge o preconceito, depois a discriminação e, por último, o ódio — e em última instância, crimes de ódio.
Num artigo de 2020, Lucas Batista de Carvalho Pinheiro, secretário-executivo do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, lembra o caso do índio Galdino Jesus dos Santos, da etnia indígena Pataxós-hã-hã-hães, que participou de manifestações em Brasília, perdeu o horário de entrar na pensão onde estava hospedado e dormiu numa parada de ônibus próxima. Cinco jovens atearam fogo nele. “Podemos nos questionar qual é a relação do assassinato de um líder indígena com aporofobia. Essa relação reside exatamente na justificativa daqueles jovens, que alegaram que cometeram o homicídio por achar que ali na parada de ônibus estava uma pessoa em situação de rua”, escreve Pinheiro.
Para Pinheiro, Galdino não morreu apenas pela sua vulnerabilidade étnica, mas por sua suposta vulnerabilidade social. “Morreu pelo motivo de que seus algozes o condenaram por ser supostamente pobre”, escreveu.
Historiador doutor em filosofia, Antonio Djalma Braga Junior, professor da Universidade Positivo em Curitiba, diz que o contexto de desmonte de políticas sociais favorece o sentimento de aporofobia. Para ele, impedir a doação de comida é “o máximo da crueldade”. O prefeito de Curitiba Rafael Greca afirmou, na ocasião, que foi mal interpretado e que queria apenas organizar a distribuição devido à pandemia — e retirou a multa.
Braga Junior lembra, porém, que Greca já cometeu outro deslize pelo qual pediu perdão, em 2016. Ao participar de uma sabatina na PUC, ele contou que por 20 anos coordenou o albergue Casa dos Pobres São João Batista, mas ressaltou: “Eu não sou São Francisco de Assis. Até porque a primeira vez que eu tentei carregar um pobre no meu carro eu vomitei por causa do cheiro”, disse o então candidato. Greca disse depois que estava explicando a dificuldade do trabalho de quem ajuda os pobres.
Segundo Braga Júnior, a discussão não é mais ausência de políticas públicas, como ocorria na década de 1990, mas o desmonte delas.
"Há na sociedade grupos que defendem esse horror ao pobre, e outros que tentam resolver. Por quem os sinos dobram?", indaga o filósofo.
Os especialistas afirmam que não basta empatia, outra palavra que entrou na moda. É preciso mais ações de solidariedade. Missionário há três anos na catedral de Nossa Senhora de La Salette, nos alpes franceses, o padre brasileiro Neuci Miranda afirma que sempre houve no Brasil um discurso de que o pobre é pobre porque é vagabundo e não se esforça.
"A ideia de que alguém é pobre porque não se esforça gera o ódio. Pensam que a culpa é dele por estar na pobreza e acham que quem recebe uma ajuda do governo não trabalha porque não quer, não pela falta de emprego", explica.
Com atuação na periferia de algumas das maiores cidades do país, como Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Belo Horizonte, Miranda acredita que a melhor forma de evitar a aporofobia é fortalecer as instituições da sociedade civil e as instituições de Estado, para que as políticas públicas de amparo social funcionem.
A Prefeitura de Londrina não acolheu o projeto aprovado pelos vereadores. A agência da Caixa em Porto Alegre retirou as pedras. A Prefeitura de São Paulo, na época em que o padre usou a marreta, afirmou que havia sido uma “iniciativa isolada” de um cidadão. Em São Paulo, ainda hoje há bancos em praças com braços de ferro a dividir o assento. Para ninguém dormir ali.