O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) deve ser o sexto réu a ser interrogado nesta fase do julgamento da tentativa de golpe de Estado
Gustavo Moreno/STF
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) deve ser o sexto réu a ser interrogado nesta fase do julgamento da tentativa de golpe de Estado








A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) começou, na tarde desta segunda-feira (09), a ouvir os réus da Ação Penal (AP) 2668, que apura a tentativa de golpe de Estado que resultou no atos antidemocráticos do dia 8 de janeiro de 2023. O primeiro a ser interrogado na sessão conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, foi o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e, em seguida, foi ouvido o ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e atual deputado federal, Alexandre Ramagem. 

Os depoimentos duraram cerca de cinco horas. Ao longo da sessão, Mauro Cid e Alexandre Ramagem prestaram esclarecimentos sobre a suposta articulação de autoridades civis e militares para anular o pleito que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva (PT). 

A previsão é que os interrogatórios dos réus que integram o chamado Núcleo 1, ou Núcleo Crucial da tentativa de golpe, sigam até sexta-feira (13). Na terça-feira (10), o primeiro a ser inquirido será o o ex-comandante da Marinha Almir Garnier. Os demais, continuarão a ser ouvidos por ordem alfabética. 

Planos para anular as eleições de 2022

O interrogatório de Mauro Cid foi o mais longo do dia, com duração de cerca de quatro horas, e girou em torno das declarações prestadas em sua delação premiada, em agosto de 2023. O ex-ajudante de ordens detalhou encontros, repasses de dinheiro, suposta minuta golpista discutida com militares, encontros com o hacker Walter Delgatti e a omissão deliberada do então presidente Jair Bolsonaro (PL) diante da mobilização de apoiadores em frente a quartéis.

A sessão começou com o ministro Alexandre de Moraes retomando o teor da delação premiada. Segundo Cid, no fim do governo Bolsonaro formaram-se três grupos em torno do presidente: os conservadores, que o aconselhavam a pedir que manifestantes deixassem os quartéis; os moderados, que reconheciam a vitória de Lula e a impossibilidade de reverter o resultado; e os radicais, que insistiam na adoção de medidas extremas.

Esse último grupo tentava convencer Bolsonaro a agir ou, em outras palavras, a dar um golpe de Estado. Esses radicais seriam, segundo Cid, a favor de um "braço armado" e queriam que Bolsonaro assinasse um decreto que permitiria o golpe. Esse grupo acreditava que o ex-presidente receberia o apoio da população quando "desse a ordem" para a ruptura institucional. 

"Esses grupos não eram organizados. Eram pessoas, individualmente, cada um com a sua ideia, que se aproximavam do ex-presidente, em momento distintos, cada um levando sua ideia para ele. Não existia uma organização e nem reuniões desses grupos", explicou Cid. 

O militar disse que Almir Ganier Santos, almirante de esquadra brasileiro e ex-comandante da Marinha, era um desses radicais que queriam um golpe de Estado. 

Em relação às manifestações que ocorreram após o resultado das eleições presidenciais de 2022, Cid contou que o elo entre os manifestantes e Bolsonaro era o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e candidato a vice na chapa à reeleição.

O ex-presidente, segundo o delator, se manteve recluso após a derrota, sem tomar atitude pública para conter os protestos.Em uma das conversas que teve com apoiadores mais conservadores, Bolsonaro teria dito: “Não fui eu quem chamou eles aqui, não sou eu que vou mandar ir embora”.




Pressão sobre o Ministério da Defesa

As investidas para questionar o resultado das eleições não se limitaram ao campo político. Moraes perguntou se Bolsonaro queria uma atuação mais contundente então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, em relação à comissão de transparência das eleições, montada pela pasta chefiada pelo militar.

Cid confirmou que Bolsonaro queria uma postura mais dura por parte do então ministro. O general chegou a preparar um relatório técnico, que seria apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Bolsonaro, contudo, pressionou por um documento mais político, o que fez com que a reunião com o TSE fosse desmarcada.

"Jair Bolsonaro queria que o documento produzido [pela comissão] fosse 'duro'. O senhor confirma isso?", indagou Moraes. Cid respondeu que sim.

Moraes perguntou ainda se Cid sabia que, após a conclusão do segundo turno das eleições presidenciais de 2022, Nogueira já estava com o relatório da comissão pronto. O interrogado respondeu que tinha conhecimento e confirmou a pressão por parte do ex-presidente.

"O general Paulo Sérgio tinha uma conclusão desse documento voltada para um lado mais técnico e tinha a tendência de fazer algo mais político. No final chegou a um meio termo, que foi o que foi produzido e assinado", afirmou o militar.

Reuniões para anular as eleições e prender autoridades

Em um dos trechos do interrogatório, Cid falou sobre a discussão de uma minuta de decreto que previa a anulação das eleições e a prisão de autoridades — entre elas, ministros do STF e o presidente do Senado. O documento, entregue a Bolsonaro por seu assessor, Filipe Martins, listava supostas interferências do Judiciário e sugeria a decretação de estado de defesa, estado de sítio e a criação de uma comissão eleitoral para convocar novo pleito.

Segundo Cid, Bolsonaro chegou a editar o texto, retirando os nomes de várias autoridades da lista de prisões, com exceção do ministro Alexandre de Moraes. "O documento era constituído de duas partes, a primeira parte eram os considerandos, com 12 páginas, muito robusto, em que listavam as possíveis interferências do STF e TSE no governo Bolsonaro e nas eleições. Na outra parte, entrava em questões mais jurídicas, de estado de defesa, estado de sitio, prisão de autoridades e decretação de um conselho eleitoral para refazer as eleições", detalhou Cid.

A proposta foi apresentada em reuniões com os comandantes das Forças Armadas. Apenas o almirante Almir Garnier, então comandante da Marinha, teria se disposto a colocar tropas à disposição de Bolsonaro, sob a condição de adesão do Exército. Freire Gomes, comandante do Exército, e Carlos Baptista Junior, da Aeronáutica, se mostraram contrários à iniciativa, segundo o delator.

Encontro com hacker

Outro episódio abordado durante o interrogatório foi o encontro de Bolsonaro com o hacker Walter Delgatti, intermediado pela deputada licenciada Carla Zambelli (PL). Segundo Cid, a reunião ocorreu no Palácio da Alvorada, durante o café da manhã, com o objetivo de encontrar alguma brecha no sistema das urnas eletrônicas que permitisse questionar judicialmente a eleição.

"Quando eu cheguei, o hacker estava detalhando como poderia ter sido feita uma fraude [nas urnas] e como poderia descobrir essa fraude. No final da reunião, o presidente [Bolsonaro], pediu para o general Paulo Sérgio receber esse hacker junto com a Carla Zambelli", detalhou Cid.

Delgatti teria sido encaminhado ao então ministro da Defesa para informar sobre essa vulnerabilidade nas urnas, já que o general estava responsável, no âmbito da comissão de transparência das eleições, por elaborar um relatório sobre a lisura do pleito.

Cid afirmou que essa reunião ocorreu, mas não com o chefe da pasta. "Ocorreu com alguém abaixo dele [Paulo Sérgio], que estava cuidando dessa parte das urnas", completou. 

O interrogado também falou sobre um repasse de dinheiro, supostamente para financiar manifestantes. De acordo com Cid, Braga Netto entregou a ele, dentro de uma caixa de vinho, um valor a ser repassado para o major Rafael de Oliveira, integrante das Forças Especiais do Exército — conhecidas como "Kid Preto". 

Antes de receber o dinheiro, Cid consultou Braga Netto sobre a possibilidade de o Partido Liberal (PL) financiar despesas de manifestantes acampados em frente aos quartéis. A resposta oficial foi negativa. Posteriormente, o general apareceu com o montante em espécie.

Cid afirmou desconhecer o destino exato do dinheiro, mas revelou que militares monitoravam lideranças e ações planejadas pelos manifestantes acampados em frente ao QG do Exército.

8 de Janeiro

Após Alexandre de Moraes fazer as perguntas, a palavra foi passada ao munistro Luis Fux, que questionou sobre a percepção do ex-presidente Bolsonaro em relação ao apoio que recebeu dos caminhoneiros após a derrota nas urnas.

Cid respondeu que o ex-presidente não queria "de jeito nenhum" que houvesse uma greve. Segundo o militar, a maior preocupaçãodo ex-presidente após o segundo turno das eleições era com os bloqueios de estradas e a possível paralisação dos caminhoneiros.

"O presidente tinha uma preocupação muito grande dos caminhoneiros pararem o país. Ele queria, de alguma forma, que não houvesse uma manifestação dos caminhoneiros bloqueando estrada, nem parando o país, porque senão, ele comentava, cairia na conta dele uma crise econômica imensa", detalhou. 

Em seguida a oportunidade de interrogar foi passada ao procurador-Geral da República Paulo Gonet e, depois, aos advogados dos demais réus na ação penal, com destaque para a defesa de Bolsonaro, que interrogou Cid por cerca de uma hora. 

Ao advogado de Bolsonaro, Celso Vilardi, Cid afirmou que o ex-presidente não tinha conhecimento prévio dos atos de vandalismo que ocorreriam em 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Também negou que tenha sido discutida, em reunião com militares das Forças Especiais, a entrega de uma minuta golpista a Bolsonaro.

Por outro lado, confirmou que o nome de Moraes foi amplamente citado na reunião, realizada em um salão de festas, com duras críticas, memes e xingamentos. "Foi muito criticado. As mesmas críticas que o senhor [Moraes] recebe, os mesmo xingamentos, de ceta forma, passaram po ali", afirmou. 

"Não houve nada no sentido de 'temos que acabar com ele' ou 'vamos planejar alguma coisa', isso nunca existiu. Tinham xingamentos, 'esse cara é um desgraçado', fotos, figurinhas memes. Teve esse grau de informalidade", completou. 

Interrogatório de Ramagem

O deputado federal  e ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem (PL) foi questionado, pelo ministro Alexandre de Moraes, sobre sua atuação à frente do órgão e sobre documentos que indicariam esforço para fragilizar a credibilidade do sistema eleitoral brasileiro.

Logo no início da oitiva, Moraes abordou o conteúdo de documentos encontrados no e-mail de Ramagem, que indicam posicionamentos do parlamentar acerca das eleições de 2018 e da confiabilidade das urnas eletrônicas. O ministro leu um dos trechos no computador apreendido pela Polícia Federal, em que o deputado fala sobre a lisura do sistema eleitoral. 

“Por tudo que tenho pesquisado, mantenho total certeza de que houve fraude nas eleições de 2018, com vitória do senhor [Bolsonaro] no primeiro turno. Todavia, ocorrida na alteração de votos. [...] Entendo que o argumento de anulação de votos não seja uma boa linha de ataque às urnas. Na realidade, as urnas já se encontram em total descrédito perante a população, deve-se enaltecer essa questão já consolidada subjetivamente", escreveu Ramagem no documento que, segundo ele, não chegou a ser enviado para Bolsonaro.

O trecho lido também sugere que os documentos elaborados por Ramagem defendiam a necessidade de “trazer novamente e constantemente” a narrativa de vulnerabilidade do sistema eletrônico de votação.

Em resposta, Ramagem alegou que os documentos eram privados, nunca foram tornados públicos, tampouco encaminhados a terceiros. “São documentos privados, que não fiz difusão, nem encaminhamento nenhum. Eram diversas e diversas anotações”, afirmou.

O deputado defendeu que os textos se referem a discussões em curso no Congresso Nacional à época da votação sobre o chamado “voto auditável” — proposta defendida por aliados de Bolsonaro para permitir a impressão do voto eletrônico.

Segundo Ramagem, os arquivos foram localizados em um notebook pessoal apreendido pela Polícia Federal em janeiro de 2024. O equipamento estaria em uso desde 2019, passando por sua gestão na Abin, seu período de campanha e o primeiro ano de mandato como deputado federal. O parlamentar argumentou que, embora o material contenha críticas ao sistema eleitoral, não há qualquer referência às eleições de 2022. “Eu estava usando esse computador, com diversos documentos, e não há uma menção, inclusive do pleito de 2022, sobre o trabalho das urnas”, disse.

Ao tentar contextualizar os trechos destacados pelo relator, Ramagem insistiu que as observações refletem preocupações técnicas com o acesso restrito de técnicos do TSE ao código-fonte e às chaves criptográficas das urnas. “Esse comentário todo diz respeito à votação que estava acontecendo no Congresso Nacional”, explicou. “E eu repito: depois que houve a votação, não há mais anotação privada minha”, completou.

Ainda durante o interrogatório, o deputado negou ter utilizado a estrutura da Abin para monitorar autoridades do Judiciário, como ministros do STF ou do TSE, durante o governo Bolsonaro. “Nunca utilizei monitoramento algum pela Abin de qualquer autoridade”, declarou. “Ao contrário do que foi colocado em comunicação, nós não tínhamos a gerência de sistemas de monitoramento.”

Funcionamento do interrogatório

Durante a abertura da fase de interrogatórios, Moraes detalhou como será conduzido o processo de oitiva dos réus envolvidos na tentativa de golpe de Estado. Segundo o relator, os acusados responderão primeiro sobre aspectos pessoais e antecedentes, para depois tratarem diretamente dos fatos investigados, das supostas infrações, das provas reunidas e das declarações de testemunhas e vítimas já ouvidas.

Moraes enfatizou que os réus têm o direito ao silêncio e à não autoincriminação, podendo se recusar a responder integralmente às perguntas ou optar por responder apenas parte delas, tanto da acusação quanto da defesa. “É uma previsão constitucional, uma previsão que consagra o direito à defesa, ao réu no exercício da sua autodefesa e o interrogatório é o momento principal, onde todos os réus podem exercer a sua autodefesa, podem expor os fatos como entendem que eles ocorreram”, afirmou.

Ele também reforçou que os acusados não são obrigados a colaborar com a acusação. “Portanto, os réus não precisam responder às indagações feitas. Não é constitucionalmente exigível e razoável que o réu possa, como se diz, trair a si mesmo, produzindo provas contra si e auxiliando o Ministério Público na acusação”, completou.

Todos os réus do chamado Núcleo 1 poderão ser questionados pela Procuradoria-Geral da República, pelos ministros da Primeira Turma e pelas respectivas defesas. A ordem das perguntas seguirá um protocolo específico: primeiro, o ministro Alexandre de Moraes faz os questionamentos, seguido por Luiz Fux. Depois, a PGR e os advogados de defesa encaminham suas perguntas ao relator, que faz o intermédio e autoriza a resposta. A defesa do réu ouvido no momento tem prioridade, seguida pela acusação, e depois pelas defesas dos demais réus, em ordem alfabética.

Os integrantes do Núcleo 1 se tornaram réus em 26 de maio, quando a Primeira Turma do STF acatou, por unanimidade, a denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR). 

Os nomes que compõem esse núcleo e que serão ouvidos nesta fase do julgamento, que começou nesta tarde e deve se estender até sexta-feira (13), são: 

  • Mauro Cesar Barbosa Cid, tenente-coronel e ex-ajudantes de ordens de Bolsonaro; 
  • Alexandre Rodrigues Ramagem; ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e atual deputado federal;
  • Almir Ganier Santos, almirante de esquadra brasileiro e ex-comandante da Marinha;
  • Anderson Gustavo Torres, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal;
  • Augusto Heleno Ribeiro Pereira, general de exército da reserva do Exército Brasileiro e ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI);
  • Jair Messias Bolsonaro, ex-presidente;
  • Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, general de exército do Exército Brasileiro e ex-ministro da Defesa; e
  • Walter Souza Braga Netto, militar da reserva e ex-ministro-chefe da Casa Civil. 

Esses réus são acusados dos crimes de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima; e deterioração do patrimônio tombado. 

No caso específico do ex-presidente Bolsonaro, além de responder por esses crimes, ele é acusado de liderar a organização criminosa. Já no caso de Ramagem, em decorrência da decisão da Câmara dos Deputados de sustar a ação penal, acatada parcialmente pelo STF, o julgamento do réu nas acusações de dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado está suspenso até 2026, bem como a prescrição desses delitos. 

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