Vinicius Lummertz é ex-ministro do Turismo e presidiu a Embratur
Alan Morici
Vinicius Lummertz é ex-ministro do Turismo e presidiu a Embratur


Escrevo este artigo em voo pela Eastern China, de Kunming, na província de Yunnan, para Bangkok, na Tailândia . Tenho em mãos a edição do dia 24 de setembro do China Daily. Ao ler jornais , podemos formar imagens da era em que vivemos – sobre o Zeitgeist, o espírito do tempo . Em 1984, realizei um trabalho de pesquisa para a graduação na Universidade Americana de Paris, nos arquivos da Universidade Paris XI – onde  Fernando Henrique Cardoso fora professor. A função era ler e interpretar os jornais franceses durante o período de ocupação pelas tropas nazistas. A análise era muito complexa, dadas as circunstâncias, mas aprendia-se tanto nas linhas quanto nas entrelinhas. O mais importante: o contexto.

Conduzido pelo Professor Pike, da Universidade de Oxford, esses estudos fizeram parte de um livro que ele publicaria anos depois, e nós, seus ex-alunos, recebemos créditos. A ideia é simples, porém eficaz – um recurso clássico nos estudos de ciências políticas .

Vamos às manchetes do China Daily , jornal controlado pelo Governo Central da China, que reflete a imprensa chinesa de hoje, assim como o Herald Tribune fazia no passado pela democracia norte-americana, com edições em vários continentes. A manchete principal do China Daily mostra uma foto colorida do presidente Xi Jinping , na qual ele exalta as conquistas dos esforços do programa espacial chinês rumo à Lua e agradece a cooperação de agências espaciais de outros países. Um pouco de contexto: lembro-me de que, na década de 1980, o Ministro da Ciência e Tecnologia do Brasil, Luís Henrique da Silveira, catarinense, no governo Sarney, levou aos chineses a tecnologia dos satélites brasileiros, Intelsat, sob o beneplácito do Departamento de Estado norte-americano.

Ao lado, outra manchete positiva relata o esforço do governo central e das províncias chinesas em buscar novos motores de crescimento econômico, com foco em inovação. Outra manchete otimista trata do aumento na concessão de vistos para estudantes chineses estudarem nos Estados Unidos e pede melhor tratamento para eles. Outras manchetes falam sobre o esforço de fomentar as políticas de comércio e consumo no mercado interno chinês, frente aos desafios das exportações. Na mesma linha, outra manchete aborda a inovação em veículos aéreos de baixa altitude. Ainda, há uma grande manchete sobre a "Cidade do Abacate" em Yunnan, que tem grandes perspectivas de sucesso com essa "exótica superfruta", um sucesso na agricultura com altas perspectivas no turismo.

Mais manchetes culturais incluem estudos sobre o conhecimento ancestral da laca e seus novos usos. Nas páginas seguintes, fala-se sobre "a busca por relações estáveis entre a China e o Japão". Uma matéria após a outra trata de temas desenvolvimentistas, como: "fazendas de alta tecnologia impulsionam a produção de grãos", "novas legislações de alta qualidade ajudam a modernizar o país" e "melhores estradas melhoram a vida nas pequenas cidades".

Os editoriais políticos mais complexos discutem o aumento de tarifas dos EUA contra produtos chineses, como a taxação de 100% sobre veículos elétricos chineses, o que poderia gerar risco inflacionário para os americanos. Outras matérias falam sobre "segurança hídrica na Ásia", "lixo radioativo japonês" e "comércio e o retorno do turismo chinês para Taiwan". Além disso, há bastante conteúdo sobre cultura, e, nos esportes, ênfase na paixão pelo futebol europeu. Dá para ter uma ideia.

Brasil

Agora, seguindo o espírito do tempo, vamos ao Brasil e às manchetes da Folha de S.Paulo, jornal da terceira maior democracia do planeta, um dia depois, 25 de setembro. A Folha é também o jornal mais influente do Brasil, produzido com altíssima qualidade técnica. A manchete principal: "Brasileiros gastam 21 bilhões de reais com apostas em agosto". Outra: "Copom adota tom mais duro sobre contas públicas e política fiscal", isso no país com os juros mais altos do planeta.

Segue o baile: "País tem problemas com educação positiva". "País bate recorde de servidores com 12,7 milhões de profissionais no setor". No centro da capa do jornal, uma grande foto de um tamanduá ferido: "Unidade do interior de São Paulo atende número inédito de animais silvestres feridos em queimadas", diz a manchete. Outra: "Marçal só oferece arruaças ao eleitor". E ainda: "Itaú devolve ações da Eldorado, e caso registra renúncia de árbitro".

Matérias internacionais ganham o pé da página e versam sobre os bombardeios de Israel, e sobre Lula na ONU , com a frase: "Não terceirizo obrigações por seca". Mais à frente, o presidente Lula – pois assim deve ser chamado – recebe destaque na página três com o artigo: "Lula faz discurso de comentarista na ONU".

Como infere-se desde o início, este não é um artigo acadêmico, mas um simples espelho das vidas dos países, como ocorre todos os dias nos seus jornais e nas "news" em geral. A comparação pode ser feita diariamente, e o resultado deverá ser semelhante. Sei disso porque já o fiz várias vezes. Concretamente, o mundo é feito de palavras, do que é dito, histórias e ficções que refletem e moldam realidades, como diz Yuval Harari, o maior historiador do momento.

Este artigo jornalístico, objetivamente, não cede tampouco a qualquer intenção moralista ocidental, pois a China tem sua própria e complexa história – sempre viveu sob regimes de "muita autoridade" – e vem obtendo resultados econômicos impressionantes nas últimas décadas, enquanto o Brasil, "eterna jovem democracia", parece continuar se debatendo em miscelâneas, como aparece no jornal do dia.

O fato é que a China tem um Plano de 100 anos (1949-2050) e está colocando-o em prática, como refletido nas manchetes do China Daily. E o Brasil, com isso? Certamente o Brasil não tem um plano assim, mas somos muito grandes. Somos parceiros preferenciais da China, dos Estados Unidos e da Europa. Pode não parecer pelas nossas manchetes, mas somos o maior exportador de alimentos do planeta. Para ilustrar, produzimos 80% do suco de laranja do mundo e não informamos esses consumidores planetários, nem aos brasileiros. Alimentamos o mundo. Por isso, somos o quinto maior superavit comercial do planeta, donos de minerais estratégicos, grandes produtores de energia verde , o maior produtor de energia renovável entre países de consumo relevante, um dos maiores mercados internos de consumo do mundo, a maior reserva de água do planeta, um dos maiores potenciais turísticos do mundo e muito mais.

Caro leitor, vou parando por aqui, antes que seja acusado de defender o controle da imprensa – longe disso. Explico: por vezes, ouvimos de especialistas internacionais que nossa avançada imprensa trata muito mais de fatos do que de contextos. Seria porque o país se perde de seu contexto diariamente ou porque nossos meios de comunicação não têm o hábito de enxergar o lado positivo do Brasil, já que isso poderia ser visto como "chapa-branca"?

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